Cultura
popular: práticas e representações
Registro Performances cultural se
constitui pela identificação, e análise de determinado fenômeno em suas
múltiplas configurações. Particularmente interessante é a possibilidade de
abstrair de uma performance cultural específica – canções, danças, textos
verbais, poemas orais, em íntima conexão com as expressões faciais, os gestos,
a cena, as situações de conflito – uma estrutura genérica da cultura em que tal
manifestação está inserida (Camargo, 2013).
Assim, Além do conteúdo
cultural da manifestação em questão, os estudos de performances culturais
chamam a atenção para o meio específico em que tal manifestação é transportada,
para as pessoas envolvidas em sua realização, focando igualmente nas formas
como esse conteúdo é organizado e transmitido, em ocasiões e situações
específicas. Pensadas metodologicamente como ser e devir, nas dimensões do
passado, presente e futuro, interessa analisar cada fenômeno concreto em suas
distintas manifestações, identificando os elementos de mudança ou adaptação em
relação às tradições culturais e às organizações sociais.
Interdisciplinar por
excelência para se estudar uma determinada sociedade ou cultura por meio das
performances culturais importa integrar diversos recortes: a análise textual e
temática da literatura – escrita e oral –, de lendas, de canções, como proposto
por folcloristas e linguistas; a descrição e o entendimento de rituais e festas
de grupos sociais específicos, como são próprios do fazer dos antropólogos e
etnólogos; o estudo do desenvolvimento de áreas específicas da arte como a
dança, a pintura, a música, realizadas pelos historiadores; a investigação das
relações dessas manifestações com as mídias – rádio, televisão, internet –
levada a cabo pelos profissionais da comunicação. Esta proposta de integração
está na base da constituição dos estudos de performances culturais proposto por
Milton Singer (Camargo, 2013).
Ao historiar o
desenvolvimento do campo – ao passo em que apresenta um balanço de seus limites
e possibilidades –, Langdon (2007) apresenta cinco qualidades
inter-relacionadas que permitem perceber um eixo nas várias vertentes e
contribuições aos estudos de performances culturais.
A primeira qualidade é
que os estudos de performance colocam a experiência em relevo.
Trata-se de experiência ressaltada, pública, momentânea, cuja execução envolve
o ator (performer), a forma artística, a plateia e o contexto para criar
uma experiência emergente. Deste modo, certa espontaneidade no ato – ainda que
exaustivamente ensaiado – lhe é inerente. E a expressão estética é vista como
tão ou mais importante que o sentido literal.
A segunda qualidade é
a participação dos expectadores. Trata-se da participação plena dos
presentes no evento, interagindo na experiência para criar um sentido
indissociavelmente ligado ao contexto. O contexto produz uma força retórica que
transforma a experiência dos participantes, ainda que esta seja apenas
momentânea.
A experiência
multisensorial configura a terceira qualidade. Para além da análise
semântica do ritual, a experiência de performance valoriza a sobreposição e a
simultaneidade dos estímulos: luzes, cheiros, música, movimento corporal,
cenário. Tudo concentrado numa experiência sinestésica unificada com elementos
emotivos, expressivos, sensoriais (e também racionais/conceituais).
A quarta característica
é o engajamento corporal, sensorial e emocional. O corpo e a
corporificação são elementos levados em consideração nas análises de
performances culturais. Tanto a possibilidade de transformação fenomenológica
no nível mais profundo do corpo como a eficácia terapêutica de rituais são
investigadas2,
rejeitando uma divisão cartesiana de experiência, que separa o racional do
emocional e do corporal.
Por fim, a autora
apresenta o significado emergente como a quinta qualidade. Ao
pensar a cultura como processo social contínuo, novos significados e valores
estão sempre emergindo de novas práticas e experiências, que trazem novos
significantes e são veiculados por novos suportes. Assim o modo de expressão
ganha posição central nesses estudos, valorizando a experiência imediata,
emergente e estética. A emergência implica que a estrutura social pode, em
certa medida, ser inferida pela e na interação. Isso envolve uma valorização da
práxis, ligando evento, texto, contexto e pragmática e admite mesmo que aquela
performance específica pode ter influência e provocar alterações na estrutura
social.
Gestado no interior
desse campo de estudo que é lugar de encontro e diálogo de várias disciplinas
como antropologia, teatro, sociologia, história, folclore, etnomusicologia,
este texto reivindica também a possibilidade e abertura do campo para a
apresentação de resultados de pesquisa por meio de uma performance
artístico-cultural. Sua forma é a transcrição escrita da terceira versão da
referida aula/performance3,
com as devidas adaptações e revisão. Nestes termos, o que é aqui apresentado é
um relato de uma aula em forma de performance cultural. Na impossibilidade de
reproduzir a música4,
ele se concentra na interpretação das letras, na função referencial, na
terminologia de Roman Jakobson (1974).
Reconheço, entretanto,
que, nas pesquisas com e sobre canções, ademais da parte textual, a música e a
performance têm a mesma importância. E o fato de, neste ensaio, centrar minha
análise nos textos não implica abraçar O primado da linguagem que, ocupando
lugar privilegiado na tradição ocidental do discurso acadêmico, serviu também
para estabelecer uma escala de valores entre civilizações, subordinando, no
caso específico do Brasil, povos indígenas e africanos escravizados.
Nessa perspectiva, uma
canção – ou um poema oral –, revela-se em sua inteireza numa sobreposição de
aspectos e momentos que são atualizados e experiências na prática, no tempo
real da performance: a ativação da música, do texto, do canto e também do
envolvimento somático, da dança, da cor, de objetos materiais reunidos por
agentes cocriadores em um evento imediato (Finnegan, 2008). Ao reforçar a
relevância do ritmo, da entonação, dos timbres e das pausas, enfim, do que diz
respeito ao ato de cantar, à voz que soa, Ruth Finnegan lembra ainda que a
letra da canção pode ter pouca coerência ou substância, ou pode ser mínima, sem
que isso prejudique sua eficácia na performance, uma vez que essas poucas
palavras repetidas muitas vezes podem criar – junto com a música – uma
intensidade de louvor, luto, celebração5.
Por outro lado, convém
não olvidar que os conteúdos prévios trazidos pelos participantes para uma
performance também moldam seu significado. Assim, a performance não se esgota
no evento isolado, naquela explosão pontual de som e movimento "no
presente". Sem prejuízo da atmosfera mágica do momento experiencial, ela
tanto está enraizada nas memórias como reverbera nos participantes para além do
momento imediato. O foco na performance pode, portanto, ser equilibrado com o
interesse no texto e na textualidade. Performances da palavra cantada podem ser
atravessadas por experiências prévias com formas escritas – o que vale também
para as culturas ditas orais, que o mais das vezes guardaram algum tipo de
contato com a escrita. Outras performances podem ser matizadas por suas
apresentações em vídeo ou eletrônicas. Do mesmo modo, versões escritas podem
estar impregnadas de ecos de performances (Finnegan, 2008).
Por ter visto e ouvido
Bule-Bule ao vivo, em apresentações de palco, e também em DVD e CD, ao
trabalhar a significação de suas letras, inevitavelmente imagino a versão
cantada e ouço e vejo algo além das linhas impressas. As recordações dessas
apresentações e a imagem delas que reconstruo fluem para meu texto. Resta o
leitor escutar Bule-Bule para entrar no fluxo.
Para finalizar esta
apresentação, resta esclarecer que há aqui um encontro de sujeitos. Está em
operação a fusão do horizonte de conhecimento do pesquisador com o horizonte de
conhecimento da obra de Bule-Bule (Gadamer, 1986), cujo primeiro contato,
aliás, foi numa performance artística imediata, ao vivo e a cores. Para
reconhecer na obra de Bule-Bule elementos centrais da cultura popular
tradicional, era imprescindível conhecê-los. Trata-se, assim, de um diálogo, de
uma interação entre sujeitos e conhecimentos que possibilita a emergência de
novos conhecimentos.
A representação da cultura popular nas letras de bule-bule
Cultura popular
tradicional e a intermediação com o plano do sagrado
A cultura popular
tradicional é constituída por bens simbólicos criados por trabalhadores, homens
e mulheres do povo, normalmente com baixo poder aquisitivo e baixo nível de
instrução formal, e que têm ligações diretas com as condições concretas de uma
batalha dura pela sobrevivência. Ao referir-se especificamente ao Congado,
Edimilson Pereira observa, na abertura do CD Congado mineiro, que
os cantos fazem a
trilha sonora para a performance de pessoas que transcendem a precariedade da
vida material para tecerem, através de narrativas míticas, um outro sentido
para o discurso da história.
Isto pode, em grande
medida, ser generalizado para as relações estéticas, culturais e políticas que
a cultura popular estabelece com a cultura erudita e com a cultura de massa.
A tradição popular pode
ser definida, de um modo geral, pela antiguidade, pela persistência das
manifestações, pelo anonimato dos criadores, cuja referência vai se perdendo
com o passar do tempo, e por fortes traços da oralidade, que, muitas vezes,
extravasa para a fixação escrita, quando há (Cascudo, 1952). Convém lembrar,
contudo, que a cultura e o saber do povo são heterogêneos e se desenvolveram a
partir de processos que são históricos e complexos. A produção artística e
cultural do povo pode integrar elementos de escrita ao lado dos de oralidade,
assim como pode lidar com o sagrado e com o profano. Próxima da esfera do
trabalho, ela não exclui necessariamente elementos de lazer. Seu traço cultural
coletivo não impede a autoria individual; implica, antes, a conexão estreita do
talento individual, da criatividade do artista com saberes, fazeres e valores
do povo. Frequentemente associada à vida comunitária, a cultura popular também
é encontrável em uma situação de heterogeneidade social e contato com as
novidades eruditas ou veiculadas pela mídia (Cavalcanti, 2001).
Alfredo Bosi (1992)
Materialismo animista caracterizar a
situação das pessoas inseridas na cultura popular tradicional. O termo designa,
por um lado, as atividades cotidianas de trabalho do homem pobre, rústico,
oficial mecânico ou lavrador, que, por força de suas obrigações diárias lidando
com a matéria, age com senso agudo de seus limites e de suas possibilidades;
seu conhecimento prático e realista converge para uma sabedoria empírica
arraigada. Por outro lado, entretanto, na concepção da sabedoria popular, o
mundo da necessidade está longe de ser desencantado.
Neste contexto,
destaca-se a produção artística dos mestres da cultura popular, cuja arte, ao
mesmo tempo em que guarda utilidade para as necessidades da vida, revela-se
misteriosa ao lidar com uma força transcendental. O povo os reconhece como
homens e mulheres dotados de força íntima, detentores de antiga sabedoria e
capazes de agir como intermediários entre o semelhante e o mundo dos santos e
da divindade, dos ancestrais e dos espíritos da natureza (Bosi, 2002).
Esta força de
intermediação com o plano do sagrado – poder dito sobrenatural na cultura
acadêmica ocidental – é tematizada na canção Pau puro (Samba chula em desafio –
CD Licutixo):
Cavei
barro duro, cortei baraúna / tronco de aroeira, itapicuru
Corri dentro de macambira / Subi em mandacaru
Botei cascavel no bolso / Já mamei em canguçu
Parei radicho com o dedo / Então eu não tenho medo
De cantar chula mais tu
Corri dentro de macambira / Subi em mandacaru
Botei cascavel no bolso / Já mamei em canguçu
Parei radicho com o dedo / Então eu não tenho medo
De cantar chula mais tu
Apago
fogo com gás / Pra nunca mais acender
Chupo limão e não faço / Careta pra ninguém ver
Como brasa de angico / Faço a saliva ferver
Então não é sambador / Que vai me fazer tremer
Chupo limão e não faço / Careta pra ninguém ver
Como brasa de angico / Faço a saliva ferver
Então não é sambador / Que vai me fazer tremer
Os
sambadores daqui eu já medi / São todos do meu tamanho
Se for grande, míngua / Se for grosso, murcha
Se for duro, enverga / Já viu, colega,
Se for mole eu ganho.
Se for grande, míngua / Se for grosso, murcha
Se for duro, enverga / Já viu, colega,
Se for mole eu ganho.
A letra enumera uma
série de feitos que um homem normal não realiza. O repentista se apresenta como
alguém capaz de ir além do natural; de lidar com a dimensão do sobrenatural, do
fantástico. Baraúna, aroeira e itapicuru são todas madeiras muito duras,
resistentes, incorruptíveis. A macambira é uma planta da caatinga, baixa, com
espinhos curvos. O mandacaru é um tipo de cacto, igualmente espinhoso. Assim
"correr dentro de macambira", "subir em mandacaru" são
tarefas difíceis/impossíveis. Canguçu é a onça pintada. Radicho é o relâmpago.
A brasa do angico tem a propriedade de ser muito quente e queimar durante muito
tempo.
E que relação poderia
haver entre esta listagem de tarefas que exigem uma capacidade para além do
comum dos mortais com a cultura popular? Não obstante ser comum no repente a
autoafirmação do cantador jactar-se da qualidade de seus versos – que, em suas
licenças poéticas, às vezes, afirma ser capaz de ir à lua ou atravessar o
oceano a nado, anunciando a surra que dará em seu oponente – aqui é tematizada
uma capacidade "sobre-humana" de ir além do que seria comum e normal,
de realizar o que seria impossível dentro dos limites da natureza, da física,
para lembrar o etimólogo grego, physis, que implica também a
vontade de conhecer a natureza.
A cultura ocidental
erudita, caracterizada por um pensamento dualista, separa rigidamente a matéria
do espírito – o barro do sopro divino, na interpretação do Gênesis –
a essência da existência, o fenômeno do conceito. Separa fenômenos físicos
visíveis e mensuráveis, ditos naturais, de outros, invisíveis, não mensuráveis
e, portanto, ditos sobrenaturais. A tradição da cultura popular, ao contrário,
vem em grande parte de uma matriz não europeia e não separa tão rigidamente
essas esferas.
Quando alguns
missionários portugueses e italianos tiveram contato com a região do Congo e de
Angola, na virada do século XV para o XVI, muito rapidamente os congoleses, a
partir da conversão do rei do Congo ao cristianismo, adotaram a cruz como
símbolo religioso. Esses missionários acreditaram, então, numa conversão
congolesa ao cristianismo. E essa conversão efetivamente aconteceu; mas com a
manutenção de grande parte de suas crenças anteriores. A cruz rapidamente adotada
pelos congoleses já preexistia em suas crenças, representando a intersecção
entre dois mundos, ou melhor, dois planos do mundo. O plano horizontal é o da
vida cotidiana, da produção, do trabalho. Da intervenção na natureza para
garantir o alimento, a vestimenta, a moradia, enfim, a sobrevivência. Mas o
trabalho e a vida cotidiana só funcionam bem, na cosmologia congolesa, se
estiverem amparados nas forças espirituais, nas forças da natureza, dos
ancestrais, concebido como um plano vertical.
A cruz representa,
assim, a importância do mundo espiritual, dos ancestrais e das entidades da
natureza na harmonia e bom funcionamento do mundo físico. E isso permanece em
grande medida nos ritos da cultura popular. Por que muitas vezes uma oferenda
para uma entidade é feita na encruzilhada? Porque a encruzilhada é um símbolo
do cruzamento do plano vertical com o plano horizontal. A água é transportadora
desses seres, dessas entidades, e a ponte cruza o curso da água. Então além de
a água ter essa função de transporte dessas entidades, a ponte também perfaz
uma cruz sobre o curso d'água.
A interpretação da
letra da canção Pau puro, essa mesma capacidade de atuação para além do normal
e do comum é percebida, pelas pessoas inseridas na cultura popular, no
embaixador da Folia de Reis, no capitão de Moçambique. Eles normalmente são
vistos pelas pessoas do grupo como capazes de estabelecer a comunicação com o
plano do sagrado, de Deus e dos santos, das entidades, dos ancestrais e, assim,
atrair espíritos benéficos e esconjurar espíritos maléficos.
Boa parte da simbologia
do Congado reside aí, remetendo a um sistema cultural no qual os reis
acumulavam funções que eram tipicamente do feiticeiro. E, por isso, as
insígnias da realeza são tão louvadas no Congado. Levar uma coroa, levar um
cetro, representa o poder de origem religiosa de restabelecer a ordem no mundo
político, social e econômico, gerando abundância e harmonia.
Então, o que Bule-Bule
está afirmando como coisas sobrenaturais, como atividades sobrenaturais, também
se vincula com essa capacidade dos mestres da cultura popular de fazer esse
diálogo do plano horizontal, da materialidade e do físico, com o plano
espiritual. Chamar isso de algo "sobrenatural" já implica uma
percepção limitada do natural, daquilo que conseguimos explicar
cartesianamente, numa relação de causalidade, normalmente física. Essa
percepção tem como pressuposto aquela concepção dualista, de uma matéria de
barro e de um sopro divino como duas coisas essencialmente diferentes; uma
pensada e expressa como natural e outra, sobrenatural. Boa parte dos grupos
autóctones da América, assim como dos africanos que vieram para cá, não tinha
esse pensamento dualista. Em suas concepções de mundo, não se trata de algo
sobrenatural, porque suas concepções de natureza e de natural são mais amplas,
envolvendo as duas esferas, horizontal e vertical, física e espiritual. A
cultura ocidental científica separa médico de padre, ou de pastor. A cultura
popular, ao contrário, integra essas esferas. Nela, geralmente um mal físico é
percebido em relação com um mal espiritual ou emocional.
A organização da vida
social pelo calendário cósmico-religios
A canção Chuva fina
(canção campeira – CD Licutixo) trata de outros aspectos igualmente
centrais na visão do mundo presente na cultura popular. O primeiro deles é a
relação milenar do homem com a terra no ciclo natural, marcado pelo calendário
litúrgico; ciclo que foi profundamente alterado com a utilização maciça de
tecnologia no campo.
Chuva fina de manhã, deixa a campina orvalhada,
Faz o mourão da cancela mudar o som da pancada.
O vaqueiro se levanta para cuidar da boiada.
Sai espantando a saudade, cantando uma vaquejada.
Dizendo que a chuva, que a nuvem derrama,
Transforma em lama a poeira da estrada.
Faz o mourão da cancela mudar o som da pancada.
O vaqueiro se levanta para cuidar da boiada.
Sai espantando a saudade, cantando uma vaquejada.
Dizendo que a chuva, que a nuvem derrama,
Transforma em lama a poeira da estrada.
Quem trabalha no roçado pega a fazer
plantação.
Mata galinha e cevado, faz um grande mutirão.
Planta batata e arroz, fava, mamona e feijão.
Se plantar no São José, tem milho no São João.
Mata galinha e cevado, faz um grande mutirão.
Planta batata e arroz, fava, mamona e feijão.
Se plantar no São José, tem milho no São João.
E o sertanejo, feliz, agradece.
Diz: Deus não esquece do nosso sertão
A catingueira enverdece, a juremeira floresce
É como dissesse, Jesus não se esquece / do nosso sertão.
Diz: Deus não esquece do nosso sertão
A catingueira enverdece, a juremeira floresce
É como dissesse, Jesus não se esquece / do nosso sertão.
A canção faz referência
a um calendário que marca as datas de um ciclo natural, cósmico, mas que tem
uma forma de organização que não é ligada apenas à produção material pela
agricultura. É antes organizado pela sobreposição dos momentos do ciclo natural
com concepções religiosas. Se plantar o milho no dia de São José, 19 de março,
colhe no dia de São João, 24 de junho. Essas datas valem para boa parte do
Nordeste. São condizentes com o regime de chuva do sertão, do agreste e do
litoral, sendo que a primeira está mais no início do período chuvoso e a
segunda mais no final. O período engloba os 90 dias para a colheita do milho
verde; não por acaso, o principal ingrediente das festas juninas (Santo
Antônio, 13, São João, 24 e São Pedro, 29 de junho).
A culinária de milho
nas festas juninas no Centro-Oeste e Sudeste era diferente. Sua base era o fubá
de milho (bolo) ou o milho seco (canjica). Milho verde cozido ou pamonha – cujo
preparo constituía em si uma festa bem marcada no calendário6 –,
só em dezembro e janeiro, 90 dias após a entrada regular das chuvas, no final
de setembro. A irrigação altera isso. Com a interferência da tecnologia no
ciclo natural, é possível comer pamonha e milho verde o ano todo. Se o sabor é
o mesmo e/ou se faz falta a reunião para o preparo é outro assunto...
O ciclo é natural,
cósmico. Tem relação com a inclinação do eixo da Terra em relação ao sol
durante o período de um ano, em que o planeta Terra perfaz o movimento de
translação. Mas o calendário é organizado tendo em vista uma série de datas
religiosas relacionadas à vida de Cristo. Essas datas, entretanto, são
anteriores ao calendário cristão. Foram incorporadas pelo cristianismo a partir
de religiões anteriores, que celebravam datas e divindades diretamente
relacionadas ao calendário cósmico. Jesus Cristo efetivamente nasceu no dia 25
de dezembro? Por que justo o dia 25 de dezembro? Não há relato bíblico ou
exegético que indique esta data. Se quisermos modificar a pergunta, talvez nos
aproximemos da resposta. O que é, no calendário cósmico, o dia 25 de dezembro?
Solstício de inverno no hemisfério norte; é o dia mais curto e um dos mais
frios do ano.
Nós, que moramos no
hemisfério sul, temos um calendário importado do outro hemisfério, trazido nas
caravelas portuguesas. Importamos as festas do frio na Europa e as realizamos
na época do calor. Um natal na Alemanha – para ficar com a canção natalina mais
famosa no planeta – é uma época de recolhimento. Fora, está frio. A natureza
esta recolhida e o pinheiro é a única planta verde. Ao sul do equador, ao
contrário, a vida está em efervescência.
Jesus é, evidentemente,
a principal figura do calendário cristão. João Batista é outra figura central.
Filho de Zacarias e Isabel – prima de Maria – prepara a vinda do Messias. O dia
em que o calendário cristão comemora o nascimento de São João é diametralmente
oposto ao de Jesus: 24 de junho, solstício de verão no hemisfério norte. O dia
mais longo e normalmente dos mais quentes do ano, comemorado com fogueiras. O
calendário estabelece, então, como datas de nascimento das figuras mais
centrais do cristianismo, datas celebradas em um calendário pré-cristão.
São José, pai de Jesus,
segue o mesmo esquema. O dia 19 de março antecipa em poucos dias o equinócio de
primavera. A sexta-feira da paixão é celebrada na data mais próxima da primeira
lua cheia que se segue ao equinócio. A Anunciação de Maria pelo Anjo Gabriel,
em 25 de março, também beira o equinócio de primavera, 21 de março, quando
termina o hibernus no hemisfério norte e a vida volta a
frutificar. Então, quando uma Folia de Reis canta que Maria foi concebida em 25
de março, ela está cantando a fecundação; da terra e das mulheres.
A imbricação do ciclo
natural cósmico planetário, com os ciclos da mulher, comparece ainda nos 40
dias de resguardo e purificação após o parto do menino Jesus: 2 de fevereiro,
dia de Nossa Senhora da Luz (ou da Candeia), dia em que, na Bahia, também é
comemorado o dia de Iemanjá; um bom exemplo da construção social do tempo.
Um calendário montado
pela sobreposição de datas cristãs aos momentos e movimentos astronômicos,
planetários e nos ciclos da lua – que coincide com o da mulher e o das marés.
Quem mora na cidade grande, nessa profusão de luz e de barulho, não olha mais
para o céu. Se olhar, só enxerga o topo do edifício. O homem moderno, urbano,
da época industrial desaprendeu a viver no ciclo da natureza. Se estiver com
frio, liga o aquecedor. Se for calor, o ar condicionado do carro ou do
escritório. E assim nos distanciamos do ciclo astronômico sobreposto pelo
calendário cristão.
As festas da cultura
popular tradicional, ao contrário, seguem este calendário, ainda que algumas
não consigam mais cumprir seus ritos dentro do período estabelecido. É, por
exemplo, o caso da Folia de Reis de Inhumas-GO. Há muito tempo, as folias na
região não giram apenas entre os dias 24 de dezembro e 6 de janeiro. O número
de foliões diminuiu, enquanto que o de pessoas que querem receber a folia
aumentou. Para dar conta do recado, só saindo com folias em outras datas, em
outros meses do ano, mas respeitando o período de interdição da quaresma; época
de grande renovação na natureza. As galinhas mudam de pena e quase não botam na
quaresma. Quem é da roça sabe disso.
Outro aspecto a
destacar na canção Chuva fina é a referência ao mutirão. Na concepção do mundo
predominante na cultura popular, o indivíduo está profundamente ligado à sua
comunidade, aos ancestrais fundadores – reais ou míticos – do grupo e às
divindades. O grupo social e a cultura na qual está inserido são linhas de
força que influenciam diretamente o sujeito. Sua história individual é suporte
da memória coletiva ancestral. Suas atividades rotineiras de trabalho estão
imbricadas com a expressão artística, geralmente vinculadas com o plano do
sagrado, o mundo das forças sobrenaturais e dos ancestrais que constituem fonte
da sabedoria e da harmonia no mundo dos vivos.
Além do círculo
comunitário, para as pessoas inseridas no modelo da cultura popular o mundo e o
sujeito são concebidos como totalidade. A ruptura dessa totalidade instaura a
desordem contra a qual é preciso reagir pela busca do auxílio das forças
sobrenaturais (santos, espíritos dos ancestrais, anjos, objetos sacralizados).
A noção de ruptura da unidade do cosmo ou do indivíduo fundamenta o conceito de
doença na cultura popular. A seca ou a enchente, assim como o braço destroncado
ou a dor de cabeça, são indícios físicos, externos, de uma ruptura que atinge o
cosmo e o indivíduo respectivamente (Pereira & Gomes, 2002: 141).
Os mutirões constituem,
na sociedade caipira, a manifestação mais importante do trabalho coletivo. Por
seu meio, os vizinhos, convocados por um deles, ajudam a realizar os mais
variados trabalhos da roça – plantar, limpar um terreno, colher – ou da
indústria caseira – fiar, tecer. Este trabalho não é pago com dinheiro. É uma
forma de solucionar o problema de mão de obra em uma situação que,
tradicionalmente, a maioria dos bens consumidos é produzida pela família ou
pelo grupo e poucos produtos são colocados no mercado ou ali adquiridos, ou
seja, trocados por moeda. A forma de retribuição comparece com a alimentação
dos participantes em uma festa no encerramento do trabalho, que entra pela
noite com toques de viola, batuques e folias (Candido, 1988).
Igualmente importante,
neste contexto, é a obrigação moral em que fica o beneficiário do mutirão de
responder aos chamados eventuais dos que o auxiliaram. Nestes termos, o ato de
convocar e de ser convocado para trabalhos de ajuda mútua é, quiçá, o elemento
mais importante para definir o pertencimento a uma dada comunidade. A
sociabilidade do grupo, a consciência de sua unidade e a garantia de seu
funcionamento repousam em grande medida nesta obrigação. Nele há, além disso,
uma forte imbricação entre trabalho e religião, tanto em função da existência
de uma capela que reúne os vizinhos, como pela percepção de que a obrigação é,
em primeiro lugar, para com Deus, por amor de quem se serve o próximo. Por isso
mesmo, a Folia de Reis, o Jongo, o Samba de Roda, as Irmandades de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos e/ou de São Benedito, Santa Ifigênia são
forças centrípetas nas organizações comunitárias.
O caráter festivo do
mutirão é um ponto central da cultura popular, preservado nas localidades que
mantiveram um modo de vida rústica ou caipira. Em algumas regiões de Minas
Gerais, o canto de entrega de um serviço na roça ganha o nome específico de
derrubada. Após a capina de uma roça de milho – apesar de o nome sugerir a
limpa do terreno para o plantio – os participantes retornam para a casa do dono
da roça, com suas enxadas no ombro e trazendo cada qual um pé de milho
enfeitado com flores que serão trocados por pães de queijo espetados em um
galho de laranjeira. Esta troca simbólica prenuncia um jantar oferecido pelo
dono da casa que será animado pelos batuques, toques de viola, curraleira,
lundu.
Quando o trabalho é
realizado espontaneamente, sem que haja uma convocação pelo beneficiário – por
exemplo, quando os vizinhos percebem que uma roça em tempo de colheita está
ameaçada pela chuva próxima e seu dono não terá condições de realizá-la a tempo
– costuma ser chamado de traição, já que o dono é pego de surpresa e sequer tem
tempo – algumas vezes, nem condição – de preparar a festa, que será, então,
improvisada ao final do serviço.
Ancestrais como esteio da família e do grupo
A referência na canção
Chuva fina ao mourão da porteira, o esteio que a sustenta, pode servir de
metáfora para introduzir o próximo tema: os ancestrais como coluna de casa,
como sustentação e proteção dos descendentes e de toda a família. Isso é
particularmente evidente na canção Sambador falava baixo (Samba chula, CDLicutixo).
Sambador falava baixo, onde Papai chegava.
Se Papai fizesse um risco, cobra nenhuma pulava.
Aranha cortava volta, escorpião recuava.
Peneira que estava alto, na mesma hora baixava
Depois que chegava embaixo, via Papai, se assustava
Tentava subir de novo, porém Papai não deixava
Peneirava devagar, mas peneirava.
Se Papai fizesse um risco, cobra nenhuma pulava.
Aranha cortava volta, escorpião recuava.
Peneira que estava alto, na mesma hora baixava
Depois que chegava embaixo, via Papai, se assustava
Tentava subir de novo, porém Papai não deixava
Peneirava devagar, mas peneirava.
Essa canção faz
referência ao poder associado à ancestralidade. Lida com um elemento bastante
presente na cultura popular tradicional e especialmente evidente na concepção
triádica banto do indivíduo, que o liga imediatamente à sua linhagem e
coletividade. Importante lembrar que, na região de mineração de Minas Gerais e
Goiás, os bantos – originários da região dos atuais Congo, Angola e Moçambique
– corresponderam a algo em torno de 65% dos escravos importados.
Quando o capitão
Julinho canta em seu terno de Moçambique7 "coluna
de casa aguenta todo peso", refere-se àquelas pessoas escolhidas, que têm
o dom de fazer a mediação com o mundo das causas invisíveis e que podem
beneficiar – eventualmente, prejudicar – a vida das pessoas no plano das causas
visíveis.
Essa mesma ideia de
mestre da cultura popular comparece na apresentação que Bule-Bule faz de seu
pai. Os animais citados – cobra, escorpião, gavião peneira – são animais
venenosos, ou que têm um potencial ofensivo. E vale ressaltar que essa ameaça
ofensiva não se encontra apenas na esfera do imaginário, é real. Nosso
imaginário vai construindo coisas e projetando a maldade humana nesses bichos.
Contudo, são, naturalmente, animais que, para sobreviver, matam sua presa com
veneno. Em condições de equilíbrio ecológico, raramente atacariam o homem. O
fazem quando se sentem acuados ou estão com fome. E o gavião peneira, embora
não ataque o homem, faz um estrago em seu galinheiro.
E o que Bule-Bule está
afirmando sobre o pai nesta canção? O pai faz um risco no chão e afasta com
isso o que tem potencial ofensivo: cobra não pula para dentro, aranha corta
volta – evita, desvia seu curso –, escorpião recua. O pai é apresentado como
capaz de manipular as forças naturais e sobrenaturais, de modo a proteger do
mal. Exatamente o que faz um benzedor. A força do sambador também é uma força
ligada com a capacidade de proteção contra o mal; como é a do embaixador da
Folia de Reis, que, ao sair com a folia ou ao começar seu cantorio, entoa o
seguinte verso: "deixa eu me benzer primeiro para livrar do mal que
vem".
Boa parte dessa força
está ligada à ancestralidade. Por isso, a referência ao pai. E são indivíduos
que cultivam e vivem a memória do grupo. A sociedade urbana industrial
ocidental, no geral, a terceiriza, deixa num museu e raramente a visita; assim
como terceiriza a morte, mandando as pessoas para uma UTI, onde a gente não vê,
não participa e não assiste (transitivo direto e indireto) a morte. O mesmo
vale para o nascimento e seu processo de medicalização e internação hospitalar.
Os grupos inseridos na
cultura popular, de modo distinto, ainda são em grande medida sociedades de
memória. E precisam dessa memória porque, se não estiverem em paz com os seus
ancestrais, o plano material não funciona adequadamente. A cultura moderna,
urbana e industrial, por sua vez, aprecia o novo, está sempre inventando uma
novidade. Se for mercadoria cara, bonita ou envolta em propaganda para parecer
bonita e desejável, melhor ainda. De preferência descartável para, em breve,
dar lugar a outra mais nova ainda.
O mesmo respeito e
veneração com relação ao pai comparecem também na figura da mãe. E aqui
passamos para o poema matuto A parteira (CD Licutixo), que
Bule-Bule fez para a mãe.
Mamãe é véia parteira / Tem mais de cem afiado
Menino pra dá recado / Lá em casa é o que não falta
Uns traz noticia pra ela / Mãe panha um ovo e entrega
Pai vai beber nas budega / Eles ficam no terreiro
Mãe acende o candeeiro / E prosa inté a noite alta
Menino pra dá recado / Lá em casa é o que não falta
Uns traz noticia pra ela / Mãe panha um ovo e entrega
Pai vai beber nas budega / Eles ficam no terreiro
Mãe acende o candeeiro / E prosa inté a noite alta
Mãe é daquelas parteira / Sem curso, do
interior
Mas dá lição em doutor / Sabe mais que enfermeira
Zela bem do inocente / Cuida da parturiente
Não quer nem que diga oi / E só quer por recompensa
Que um passe e diga bença /Pra dizer: Deus te abençoe
Mas dá lição em doutor / Sabe mais que enfermeira
Zela bem do inocente / Cuida da parturiente
Não quer nem que diga oi / E só quer por recompensa
Que um passe e diga bença /Pra dizer: Deus te abençoe
Mãe só não tá satisfeita / É com muito governo
ingrato
Mostrando que não respeita / O eleitor lá do mato
Cobra os imposto comprido / Deixando os pobre detido
Votando sem ter direito / Candidato a ser defunto
Por esse e outros assunto / Mãe comenta desse jeito
Mostrando que não respeita / O eleitor lá do mato
Cobra os imposto comprido / Deixando os pobre detido
Votando sem ter direito / Candidato a ser defunto
Por esse e outros assunto / Mãe comenta desse jeito
Se a gente mandar doutor / Trabalhar nestas
ladeira
Eu dou meu pescoço à forca / Como num tem um que queira
Deixam nas maternidades / Nas casas de caridade
Inamps, Inps / E quem vota e paga imposto
Eles passa e vira o rosto / Vê, mais faz que nem conhece
Eu dou meu pescoço à forca / Como num tem um que queira
Deixam nas maternidades / Nas casas de caridade
Inamps, Inps / E quem vota e paga imposto
Eles passa e vira o rosto / Vê, mais faz que nem conhece
Cada uma como eu / Já salvou mais de cem vida
Em troca não recebeu / Nem um prato de comida
Alguma coisa que vem / Para os pobre que não tem
Lá na cidade se some / Imposto é a recompensa
Parece que o governo pensa / Que gente pobre não come
Em troca não recebeu / Nem um prato de comida
Alguma coisa que vem / Para os pobre que não tem
Lá na cidade se some / Imposto é a recompensa
Parece que o governo pensa / Que gente pobre não come
Eu a semana passada / Terça a noite me acordei
Embaixo de trovoada / Mesmo assim me alevantei
Era compadre Jacinto / Molhado que nem um pinto
Batendo os queixo de frio / Disse, comadre, se aprume
Pega as coisa e se arrume / Pro mode pegar meu filho
Embaixo de trovoada / Mesmo assim me alevantei
Era compadre Jacinto / Molhado que nem um pinto
Batendo os queixo de frio / Disse, comadre, se aprume
Pega as coisa e se arrume / Pro mode pegar meu filho
Os galo já miudava / A noite tava cerrada
E pra onde ele morava / Era uma légua puxada
Peguei um taco de fumo / Da grossura de um prumo
Que tem quilo e meio de peso / Dei até mais ao meu marido
E fui ver o recém-nascido / Na região do desprezo
E pra onde ele morava / Era uma légua puxada
Peguei um taco de fumo / Da grossura de um prumo
Que tem quilo e meio de peso / Dei até mais ao meu marido
E fui ver o recém-nascido / Na região do desprezo
O escuro era uma grade / Que a nossa visão
prendia
Nem eu via meu compadre / Nem meu compadre me via
Comecemo viajar / Ele pegou conversar
Comadre, por gentileza / Me diga se lhe agrada
Levantar de madrugada / Pra pegar fio da pobreza
Nem eu via meu compadre / Nem meu compadre me via
Comecemo viajar / Ele pegou conversar
Comadre, por gentileza / Me diga se lhe agrada
Levantar de madrugada / Pra pegar fio da pobreza
A velha lavou o peito, dizendo:
Compadre, isso é o meu carma / Não me incomoda em nada
Parturiente me chama / Porque está precisada
Em noite clara ou escura / Qualquer uma criatura
Sabe que conta comigo / O que me agrada é ver
Uma criança dizer / Bença, minha mãe de umbigo
Compadre, isso é o meu carma / Não me incomoda em nada
Parturiente me chama / Porque está precisada
Em noite clara ou escura / Qualquer uma criatura
Sabe que conta comigo / O que me agrada é ver
Uma criança dizer / Bença, minha mãe de umbigo
Morre muito mais menino / Nascido em
maternidade
Do que os pescoço fino / Da nossa localidade
E a mãe não faz pré natal / Nunca vai a um hospital
Passa inté dia em jejum/ Se é descuido eu não sei
Mas, dos cem que eu já peguei / Inda não morreu nenhum.
Do que os pescoço fino / Da nossa localidade
E a mãe não faz pré natal / Nunca vai a um hospital
Passa inté dia em jejum/ Se é descuido eu não sei
Mas, dos cem que eu já peguei / Inda não morreu nenhum.
Aqui temos tematizada a
cultura popular como cultura do oprimido. "Folclore é a vida e a expressão
de vida do colonizado. É a parte popular onde povo é sujeito subalterno"
(Brandão, 2003: 105). O poema apresenta a parteira como alguém que cuida das
dimensões do passado, do presente e do futuro. Novamente está em operação a
ancestralidade; o conhecimento ancestral de ervas e raízes, de orações e rezas.
E tudo envolto nos laços comunitários: basta a relação de compadrio; não entra
dinheiro na transação. Por pagamento a parteira quer apenas que o menino lhe
tome a benção, para responder: Deus te abençoe.
Além disso, ela vai
aonde e na hora em que for preciso, em contraste com as relações capitalizadas
da medicina acadêmica nos grandes centros urbanos. A forma de aprendizado do
ofício também é diametralmente distinta. É um conhecimento que se reproduz
oralmente, por imitação e por meio de relações interpessoais. As pessoas que
têm o dom, uma aptidão para o ofício, aprendem convivendo com os mais antigos.
Aprendem fazendo; às vezes na hora e no susto. Sem agências formais e
especializadas de transmissão de saber, como a universidade. E não raro por
intermédio de sonhos premonitórios ou outros tipos de "avisos" ou
chamado.
A divisão social do
trabalho advinda da revolução industrial separou antes de tudo o trabalho
manual do trabalho intelectual, o fazer do saber fazer. Nesta sociedade
estratificada em classe, com atividades altamente especializadas, o
conhecimento – e o gosto – legítimo e socialmente aceito parte das
universidades e academias. Daí são difundidos para as várias camadas como os
mais corretos, adequados, plausíveis. A ciência legitima a supremacia de um
tipo específico de saber (diferente de fazer), levando à diferença de prestígio
entre engenheiro e eletricista, arquiteto e pedreiro. E não se deve olvidar que
o fazer dissociado do saber é um dos fatores de manutenção da distância social,
justificando que uns tenham poder sobre o labor dos outros.
O poema foca nessas
diferenças de conhecimento: o conhecimento tradicional da parteira e o
conhecimento acadêmico do médico. Evidentemente, o poema está voltado para
valorizar a mãe parteira, assim como a canção Sambador falava baixo valoriza o
pai sambador. Faz pouco caso do doutor, especialmente dos que se interessam
mais pelo dinheiro e não querem se meter nos grotões e menos ainda lidar com a
pobreza. Como estratégia de valorização do conhecimento tradicional, é
legítimo. Mas, abstraindo pontualmente da obra de Bule-Bule, essa escolha não
precisa ser feita. Podemos ter um e outro conhecimento, mas sem relação de
hierarquia e submissão. Isso exige, entretanto, um comportamento e uma
percepção diferentes por parte da universidade, templo da cultura erudita, que
tem sérias desconfianças do conhecimento tradicional e popular.
O conhecimento, porém,
é algo maior que ciência. A ciência é mais limitada. É, sem dúvida, um
conhecimento poderoso e funciona em várias áreas. Mas isso não diminui a
pretensão de verdade de outras formas de conhecimento: arte, intuição,
espiritualidade. A associação do conhecimento popular com a ancestralidade – a
mãe parteira – é bastante comum em situações tradicionais. Muitas vezes a
parteira – ou o capitão de Moçambique, o embaixador de Folia de Reis – é também
benzedeira, raizeira, rezadeira. Para caracterizar este universo cultural,
Edimilson Pereira e Núbia Gomes (2002) apresentam uma série de características
gerais: preocupação de sustentar valores do passado numa atitude de
autopreservação que se manifesta na recusa às propostas modernas (conservadorismo);
a percepção da ordem social com base numa lógica de antecessores e sucessores (hierarquização);
que interagem com a natureza e o mundo sobrenatural (totalização); a
organização dos eventos, mesmo dos mais distantes, a partir de um espaço social
conhecido (contextualização da vida); a manutenção da ideia de que o
mundo é fruto da criação divina, sendo por isso instância de relacionamento
entre vivos e mortos, homens e santos (religiosidade); e a valorização
do indivíduo com base em seus vínculos com a família e os antepassados (pessoalização).
Memória e técnica na cultura popular
Ainda em relação à
questão da ancestralidade, há o fato de que muitos mestres da cultura popular
demonstram ter mais tempo na função do que idade. E não me refiro apenas aos
nove meses na barriga da mãe. Essas pessoas nascem com uma memória ancestral,
são portadoras de uma memória ancestral. E esse fenômeno é particularmente
perceptível quando encontramos mestres muito jovens que demonstram um
conhecimento da função ou do folguedo incompatível com sua idade. As pesquisas
sobre memória celular, memória muscular têm lançado algumas luzes sobre o
fenômeno e a antiga questão da hereditariedade de caracteres adquiridos ao longo
de várias gerações, que parecia definitivamente refutada, volta a intrigar e
interessar alguns pesquisadores da biologia. Particularmente interessante e
intrigante é a concepção de que comportamentos e condutas – culturalmente
condicionados – podem ativar a carga genética, contribuindo para diferenciações
culturais.
O nascimento dentro de
uma tradição cultural e com possíveis heranças de gerações anteriores é
insinuado na canção Nasceu no Samba Romeu (Samba licutixo – CD Licutixo),quando
o poeta refere-se ao fato de o sambador Romeu ter menos idade, mas igual
conhecimento, sendo justamente filho do mestre de samba com quem aprenderam.
Nasceu no Samba, Romeu,
Eu mostro a quem não conhece / este é o sambador Romeu
Não tem nem a minha idade / é mais moço do que eu
Filho do mestre de Samba / com quem a gente aprendeu
Eu mostro a quem não conhece / este é o sambador Romeu
Não tem nem a minha idade / é mais moço do que eu
Filho do mestre de Samba / com quem a gente aprendeu
Tinha uma batucada / na casa do Aristeu
A velha estava na roda / quando o pandeiro gemeu
Ela fez uma piega / que a barriga estremeceu
Quando deu a umbigada / o menino remexeu
A velha estava na roda / quando o pandeiro gemeu
Ela fez uma piega / que a barriga estremeceu
Quando deu a umbigada / o menino remexeu
Ela correu para o terreiro / mas a vista
escureceu
Quando chegou na porteira / sentiu que a bolsa rompeu
Se encostou no mourão / e este sambador nasceu
Nasceu no Samba, Romeu.
Quando chegou na porteira / sentiu que a bolsa rompeu
Se encostou no mourão / e este sambador nasceu
Nasceu no Samba, Romeu.
As indagações sobre a
memória ancestral ainda devem passar por muitas investigações e estudos da
parte dos pesquisadores mais afinados com a transdisciplinaridade. Os
cartesianos, provavelmente a rejeitam peremptoriamente e consideram mesmo perda
de tempo ou "viagem" qualquer reflexão a respeito. Um fato,
entretanto, está fora de discussão: um mestre da cultura popular numa situação
de tradição familiar, quando chega aos seus 45 para 50 anos de idade,
geralmente já passou por várias – não raro todas – funções dentro de um
folguedo ou de uma festa religiosa. Por acompanhar a atividade desde a barriga
da mãe e começando a atuar por volta dos cinco ou seis anos de idade, aos 45 ou
50 detém uma técnica consistente. E realiza passos e movimentos de dança
complexos com um mínimo de esforço e energia, pois os passos estão memorizados
e não precisa pensar para executá-los. O mesmo vale para a execução de
instrumentos musicais (Barroso, 2004).
Não é difícil encontrar
a percepção de pessoas ligadas à cultura erudita sobre a cultura popular, de
que essa se aprende por imitação, reservando a técnica e suas formas de
transmissão para as formas de ensino institucionalizadas, por excelência
conservatórios, escolas de dança e balé, universidades.
Sobre o conhecimento
técnico e suas formas de ensino na cultura popular, apresento dois exemplos
diretamente vivenciados. Embora conhecedor da manifestação desde a infância, do
tempo em que passava as férias escolares na fazenda dos avós maternos no sul de
Minas Gerais, aproximei-me da Folia de Reis na condição de pesquisador. Já
tocava violão e logo depois comecei a aprender também viola caipira e
frequentar um curso de canto, respectivamente, com Roberto Corrêa, nos cursos
de verão da Escola de Música de Brasília, e com Mábia Felipe, professora
formada na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. Assim,
comecei a me interessar pelo cantorio da Folia de Reis e tentar participar.
A professora Mábia
avaliou meu repertório e, entre outros problemas identificados, concluiu que eu
cantava num registro muito grave, em que não conseguia dar cor nem brilho à voz.
Tampouco projeção. E passamos a trabalhar exercícios de respiração e de técnica
vocal para alcançar um registro mais agudo. Nesse ínterim, fui participar do
giro de uma Folia em Inhumas-GO. O embaixador, seu Lourenço8,
construtor de cisternas e poços artesianos, ouviu-me cantando a segunda voz – a
mais grave da resposta – e logo deu o mesmo diagnóstico:
— Não! Sua voz aí está
errada. Vem cá.
Quando a folia chegou à
casa seguinte, chamou outro folião, João Guará9,
e fomos para a calçada oposta. Ao ouvir o cantorio, íamos reproduzindo a
resposta. Eu na segunda voz, João Guará na primeira e seu Lourenço na terceira.
A minha tarefa era prestar atenção e pegar a primeira voz, que tem um intervalo
de terça acima da mais grave.
Fui tentando fazer a
primeira voz. João Guará havia passado para a segunda. Na casa seguinte:
— Agora vamos cantar
lá, pertinho do pessoal.
Umas três estrofes pra
frente:
— Agora nós vamos
cantar, mas vamos jogar nossa voz por cima da deles, pra escutar mais a nossa
voz que a deles.
E finalmente, uma casa
pra frente:
— Agora vamos, que eu
vou embaixar e você vai cantar essa voz aqui comigo.
O que fez seu Lourenço?
Identificou o problema e estabeleceu, na hora, um programa de ensino em algumas
etapas para superá-lo. Pura técnica: de performance (no sentido de execução) e
de ensino.
E aqui importa pouco ou
nada que ele não expresse essa técnica nos mesmos termos da professora, cantora
lírica formada na Escola de Música. É encaixe de voz dentro de uma sequência de
acordes na tonalidade de fá maior. Isso ele sabe. A primeira voz na resposta
tem uma altura intermediária entre a segunda e a terceira. E são técnicas
difíceis. A afinação é precisa. Qualquer das seis vozes que desafinar, desanda
o conjunto.
O mesmo vale para uma
dança como o cavalo marinho, ou um passo de frevo. E peço licença para um
segundo relato por mim vivenciado em uma oficina de frevo, com Mestre
Nascimento do Passo10.
Lidava com o frevo em Brasília, havia uns quatro ou cinco anos, quando por lá
provia uma oficina com o mestre. Como havia começado a dançar já perto dos 40
anos de idade, imaginava que a dificuldade em realizar determinados passos no
solo era devido a não ter mais a explosão muscular dos 20 anos. Mestre Nascimento,
na época beirando os 70 anos, repara no movimento e ordena no ato:
— Não, cadê seu braço?
Bota o braço. Eu quero ver o braço.
Minha primeira reação
foi de incredulidade. Por que o braço, se a dificuldade está na força da perna?
Mas ordem de um mestre a gente obedece e não questiona. Fiz o movimento
ascendente com o braço conforme ele, na minha frente, mostrava. E resolvi, na
hora, o problema de um passo que há muito esforçava por fazer. Um passo
efetivamente complicado e difícil. Mas a dificuldade maior não estava na força
da perna; estava na ausência de impulso do braço. O braço estirado, fazendo o
movimento ascendente na frente do tronco, impulsiona o corpo para cima,
facilitando a força e aliviando a tração dos músculos da perna. Pura técnica de
dança, aprendida e/ou desenvolvida na rua, nos carnavais de Recife.
O acesso ao
conhecimento prescindindo de um aturado esforço, cumprindo um programa
estabelecido é algo bem conhecido. E talvez até mais frequente na cultura
erudita do que na popular. De certo modo, é esse processo que caracteriza o
gênio. Wolfgang Amadeus Mozart executava com seis anos de idade peças que seu
pai, Leopold, preparara para um programa de aprendizado de violino que um aluno
normal, extraordinariamente bom, executaria aos 17, 18 anos de idade (Elias,
1995).
O escritor Autran
Dourado disse uma vez, em palestra no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB)
de Brasília, na década de 2000, que num dos livros que escreveu, só teve o
trabalho de datilografar. O livro chama Uma vida em segredo, e é um
pelo qual tinha mais carinho e dos que mais gostava em sua extensa obra. E é
experiência única nos mais de 20 livros que publicou. Todos os demais
precisaram de muito empenho e trabalho na escritura, no que ele mesmo chamava
de "carpintaria". Esse não. Apareceu, brotou na frente dele com todas
as palavras, pontos e vírgulas; e na ordem. Autran Dourado escreveu Uma
vida em segredo quando já tinha uma carreira consolidada e grande
reconhecimento no meio literário. Também a aula que está na origem deste texto
apareceu-me de repente, pronta, num vislumbre, como se tivesse sido projetada
na minha frente. Uma intuição fermentada por anos de estudo e pesquisa do tema?
O termo alemão "Einfall" pode ser apropriado para tentar entender o fenômeno.
Significando "ideia", sua tradução literal seria "que cai
dentro", também invasão, incursão. Essa aula caiu dentro da minha cabeça.
E a ideia de queda, movimento descendente, do alto, também liga com as
dimensões intuitivas e espirituais do conhecimento.
Quando me deparo,
entretanto, com um capitão de Moçambique ou um embaixador de Folia de Reis
muito novo, que nos seus 15, 16 anos, não tem idade, experiência ou maturidade
para ter aprendido "normalmente", em uma encarnação, o que ele sabe,
a pergunta é inevitável: como ele pode acessar esse conhecimento? Como se daria
tal acesso? Como entender / explicar esse fenômeno? Muitas perguntas. Se o(a)
amável leitor(a) tiver alguma resposta, agradeço a gentileza do esclarecimento.
Voltemos à canção de
Bule-Bule, esse sujeito, Romeu, que é filho do mestre de samba, cuja mãe
grávida de nove meses sambava, não nasceu e depois virou sambador. Não! Esse
sambador já nasceu sambador. Importa, sobretudo, o fato de que ele já era
sambador antes de nascer. Quem, vindo de outro meio, tendo frequentado as
instâncias da educação formal, tentou aproximar-se e estudar a cultura popular
sabe que isso faz toda diferença. Pode-se aprender muito, conhecer coisas
novas, mas existe uma vivência da história ancestral, do pertencimento, que não
se aprende. Para além da memória do cérebro, é a memória das células do corpo,
dos músculos, do sangue, dos ossos que é ativada e permite que sambadores,
foliões, congadeiros façam movimentos complexos com uma simplicidade e leveza
que os estudiosos raramente dão conta.
Cultura popular e
conservadorismo
As manifestações do
folclore e da cultura popular são muitas vezes relacionadas a forças
político-sociais e econômicas tradicionais, arcaicas, conservadoras e
retrógradas. Essa relação pode se dar, efetivamente, em alguns casos, mas não
necessariamente. Na obra de Bule-Bule, temos tanto o exemplo da resignação como
o da contestação. "Biluzinho" é uma peça que apresenta uma percepção
mais crítica da organização social. Não me levem pro mar, por sua vez,
apresenta o inverso, uma grande acomodação à situação precária e um grande
conformismo.
Biluzinho (Toada –
CD Licutixo)
De onde vem, Biluzinho? / Senta aí nesta
gamela
Que vou mandar Gabriela / Juntar uns pés de marcela
Para você se banhar
Me diga por onde andou / O que você encontrou
E por que resolveu voltar
Não é caçoada, não, eu sofri
Que vou mandar Gabriela / Juntar uns pés de marcela
Para você se banhar
Me diga por onde andou / O que você encontrou
E por que resolveu voltar
Não é caçoada, não, eu sofri
Iludido com as notícias / Que vi na televisão
Deixei o meu pé de serra / Vendi meu taco de chão
Cheguei na cidade grande / Sem ter qualificação
Fui trabalhar de servente / Empurrar carro de mão
Ganhando salário mínimo / E morando em invasão
Não é caçoada, não, eu sofri
Deixei o meu pé de serra / Vendi meu taco de chão
Cheguei na cidade grande / Sem ter qualificação
Fui trabalhar de servente / Empurrar carro de mão
Ganhando salário mínimo / E morando em invasão
Não é caçoada, não, eu sofri
Suportei um ano e meio / Não aguentei mais
pressão
Piada de todo jeito / Tanta discriminação
Esquentei minha cabeça / Pedi a conta ao patrão
Perdi 40 por cento / Da minha indenização
O temporal derrubou / Meu barraco na invasão
Não é caçoada, não, eu sofri
Piada de todo jeito / Tanta discriminação
Esquentei minha cabeça / Pedi a conta ao patrão
Perdi 40 por cento / Da minha indenização
O temporal derrubou / Meu barraco na invasão
Não é caçoada, não, eu sofri
Dividir cama com rato / Eu acho que não convém
Quando o dia começa / A exploração também
Sofre pra ir pro trabalho / Se padece quando vem
O dos outros tem valor / Porém, o que é seu não tem
Filho chora e a mãe não vê / Lá, ninguém é de ninguém
Não é caçoada, não, eu sofri
Quando o dia começa / A exploração também
Sofre pra ir pro trabalho / Se padece quando vem
O dos outros tem valor / Porém, o que é seu não tem
Filho chora e a mãe não vê / Lá, ninguém é de ninguém
Não é caçoada, não, eu sofri
Ao chegar na minha terra / Foi grande a
decepção
Tinham plantado capim / Onde eu plantava feijão
Onde eu passava montado / No meu cavalo alazão
Tinham construído estrada / Para passar caminhão
O progresso desgraçou / A vida do meu sertão
Não é caçoada, não, eu sofri
Tinham plantado capim / Onde eu plantava feijão
Onde eu passava montado / No meu cavalo alazão
Tinham construído estrada / Para passar caminhão
O progresso desgraçou / A vida do meu sertão
Não é caçoada, não, eu sofri
Meu boi de carro / Chamado de azulão
Mataram para comer / No dia da eleição
E o meu carro de boi / Eles fizeram carvão
Para assar meu boi de carro / Nesta mesma ocasião
Um comido outro queimado / Morreu minha ilusão
Não é caçoada, não, eu sofri
Mataram para comer / No dia da eleição
E o meu carro de boi / Eles fizeram carvão
Para assar meu boi de carro / Nesta mesma ocasião
Um comido outro queimado / Morreu minha ilusão
Não é caçoada, não, eu sofri
Biluzinho, fique comigo / Aqui você não padece
A marca do sofrimento / Com o tempo desaparece
Bem fez eu que não saí / O que tinha permanece
Baixe os quartos / Apague o facho
Veja se não se esquece / Quem caça o que não guardou
Viu, Biluzinho / Quando acha, não conhece.
A marca do sofrimento / Com o tempo desaparece
Bem fez eu que não saí / O que tinha permanece
Baixe os quartos / Apague o facho
Veja se não se esquece / Quem caça o que não guardou
Viu, Biluzinho / Quando acha, não conhece.
A canção aponta para o
típico processo da imigração do campo para a cidade. O fato de Biluzinho sair
iludido com as coisas que viu na televisão, marca a distinção entre uma
situação comunitária tradicional e a inserção perversa na modernidade: situação
do trabalhador sem qualificação nos serviços urbanos que sai do seu meio e
termina trabalhando como servente de pedreiro na cidade grande. E que é o mesmo
processo estudado por Marx e que continua com o avanço do capitalismo para os
países periféricos.
A nova ordem industrial
promove uma separação dos trabalhadores de suas fontes de existência. A
produção e a troca deixam de se inscrever num modo de vida indivisível, mais
geral e inclusivo, e se criam condições para que o trabalho, bem como a terra,
seja considerado como mercadoria e tratado como tal. Liberam-se os movimentos
da força de trabalho e de seus portadores e os tornam passíveis de serem
sujeitos a outros usos mais úteis ou lucrativos. Assim, a separação das
atividades produtivas do resto dos objetivos da vida permitiu que o
"esforço físico e mental" se condensasse em um fenômeno em si mesmo,
ou seja, uma coisa a ser tratada como todas as coisas, isto é, a ser
manipulada, movida, reunida a outras "coisas" ou feita em pedaços
(Bauman, 2001: 163).
O trabalho é, então,
separado da totalidade a qual ele pertencia e condensado num objeto autocontido.
A terra era uma totalidade desse tipo, constituindo um todo integrado com quem
a cultivava e arava. A destruição do campesinato põe em xeque essas relações
totalizantes rompendo a ligação e o equilíbrio natural entre a terra, o
trabalho humano e a riqueza. A terra se transforma em propriedade a ser
explorada visando lucro.
Ao contrário da canção
Biluzinho, que denuncia a situação do trabalhador da roça, que vai parar como
servente de pedreiro na construção civil – a principal empregadora de mão de obra
desqualificada na cidade – a canção Não me leve pro mar (CD A fome e a
vontade de comer) apresenta uma situação mais conformista.
Seu doutor meu lugar é na caatinga / Região que o
governo mais despreza
Onde o pai de família muito reza / E a mãe de família menos xinga
Onde um copo de água de moringa / Vale muito dinheiro no verão
Sei pilar macunã pra fazer pão / E de batata e umbu fazer cocada
Minha roupa de couro alaranjada / Lhe dá provas que venho do sertão
Não me leve pro mar
Onde o pai de família muito reza / E a mãe de família menos xinga
Onde um copo de água de moringa / Vale muito dinheiro no verão
Sei pilar macunã pra fazer pão / E de batata e umbu fazer cocada
Minha roupa de couro alaranjada / Lhe dá provas que venho do sertão
Não me leve pro mar
Não me leve pro mar / não me leve pro mar
Não me leve pro mar que eu não vou / Porque eu não sei nadar
Não me leve pro mar que eu não vou / Porque eu não sei nadar
Seu tapete eu garanto não sujar / Uma ponga em seu
carro eu nunca peço
Brevemente eu estarei de regresso / No momento eu só quero é escapar
Se o senhor permitir eu vou ficar / Por aqui arranjando o meu pirão
Fico até de vigia no portão / Para sua mansão não sofrer nada
Minha roupa de couro alaranjada / Lhe dá provas que venho do sertão
Não me leve pro mar
Brevemente eu estarei de regresso / No momento eu só quero é escapar
Se o senhor permitir eu vou ficar / Por aqui arranjando o meu pirão
Fico até de vigia no portão / Para sua mansão não sofrer nada
Minha roupa de couro alaranjada / Lhe dá provas que venho do sertão
Não me leve pro mar
A piscina que uso é um barreiro / O transporte que
tenho é um cavalo
O relógio que tenho é a voz do galo / Quando canta de noite no terreiro
Meu herói predileto é um vaqueiro / O meu ídolo imortal é Lampião
O meu mito é Padre Cícero Romão / Entre as festas prefiro vaquejada
Minha roupa de couro alaranjada / Lhe dá provas que venho do sertão
Não me leve pro mar...
O relógio que tenho é a voz do galo / Quando canta de noite no terreiro
Meu herói predileto é um vaqueiro / O meu ídolo imortal é Lampião
O meu mito é Padre Cícero Romão / Entre as festas prefiro vaquejada
Minha roupa de couro alaranjada / Lhe dá provas que venho do sertão
Não me leve pro mar...
A partir do binômio
litoral / civilização x sertão / forma de vida rústica, a canção apresenta a
resignação do retirante que quer apenas passar algum tempo na cidade, vigiando
a mansão de alguém de posse até poder retornar para o sertão. No sertão está a
festa da vaquejada e a devoção ao Padre Cícero Romão; festas que conservam os
laços comunitários.
Essas festas
tradicionais da cultura popular costumavam acontecer naquele tipo de comunidade
– um tanto idealizada – apresentada por Bauman (2001): pequena, limitada, onde
as pessoas se conhecem e com uma circulação mais restrita de ideias e de
mercadorias. Na modernidade, as raízes passam a ser empecilhos:
Fixar-se muito
fortemente, sobrecarregando os laços com compromissos mutuamente vinculantes,
pode ser positivamente prejudicial, dada as novas oportunidades que surgem em
outros lugares (Bauman, 2001: 21).
Assim, redes densas de
relações sociais – principalmente as territorialmente enraizadas – são
obstáculos a serem eliminados.
A desarticulação das
comunidades pelo capitalismo e a migração para a cidade não impede, entretanto,
que algumas se rearticulem na beira dessa sociedade, em bairros periféricos.
Assim, aparece uma Folia de Reis no Morro da Mangueira (Bitter, 2010), no Rio
de Janeiro, um Bumba meu Boi encravado em São Paulo ou em Sobradinho, cidade
satélite de Brasília. Essas ilhas de cultura popular, com sua rede de proteção
comunitária, situam-se marginalmente à cultura de massa hegemônica da moderna sociedade
capitalista ocidental. Praticamente invisíveis, mas persistentes.
Tradição e modernidade
A simultaneidade do
moderno e do arcaico, de distintas temporalidades num mesmo espaço, é
tematizada na canção A máquina de lavar roupa (CD A fome e a vontade de
comer), com veemente defesa da tecnologia rústica.
A máquina de lavar roupa / Eu troquei numa
gamela
Deixe quem quiser falar / Mamãe se dá bem com ela
Deixe quem quiser falar / Mamãe se dá bem com ela
Troquei a geladeira numa talha / Minha blusa de
nylon num gibão
O meu filtro chinês por um porrão / Meu chapéu de baeta num de palha
Minha moto num burro de cangalha / O revolver numa baleadeira
O tapete importado numa esteira / Uma jarra vidrada por moringa
Meu whisky escocês eu dei por pinga / E a guitarra em viola de madeira
O meu filtro chinês por um porrão / Meu chapéu de baeta num de palha
Minha moto num burro de cangalha / O revolver numa baleadeira
O tapete importado numa esteira / Uma jarra vidrada por moringa
Meu whisky escocês eu dei por pinga / E a guitarra em viola de madeira
A lasanha gostosa do almoço / Eu consegui coragem
pra trocar
Por buchada e carne pra assar / Vou comendo com bem menor esforço
Troquei kibe por carne de pescoço / Cocaína branquinha por rapé
O sapato caríssimo do meu pé / Troquei numa alpercata de rabicho
Faço isso com garra e com capricho / Ser feliz eu espero e tenho fé.
Por buchada e carne pra assar / Vou comendo com bem menor esforço
Troquei kibe por carne de pescoço / Cocaína branquinha por rapé
O sapato caríssimo do meu pé / Troquei numa alpercata de rabicho
Faço isso com garra e com capricho / Ser feliz eu espero e tenho fé.
A canção questiona a
ilusão de homogeneidade, que é própria da sociedade moderna. Por meio da
indústria cultural e de políticas culturais e educacionais oficiais, há uma
imposição de padrões cognitivos, estéticos, éticos, gastronômicos, produzidos
por especialistas. A partir do interesse das classes dominantes, esses valores
são difundidos por toda a sociedade. A sociedade de classes, entretanto, possui
uma heterogeneidade real que é resistente a esses mecanismos: os sujeitos
interpretam diferentemente um mesmo conjunto de símbolos; recriam formas de
sociabilidade, modos de organização e expressam interesses que podem contrapor
aos padrões e interesses dominantes. São resíduos de um tempo passado que, como
uma semente preservada, conservam sua capacidade de germinação, apontando a
perspectiva de um futuro diferente.
Dispersão11,
mais do que conclusão
Se a leitora ou o
leitor deste ensaio não conhece Bule-Bule e sua obra, reitero minha
recomendação enfática. É dos grandes artistas populares do país e mais um entre
os que não tem o reconhecimento e divulgação à altura de sua qualidade e
importância12.
Este ensaio – bem como a aula que o originou – foi escrito com a ressonância da
emoção da performance de Bule-Bule; emoção em parte recuperada, nas aulas e palestras,
pela audição dos cantos gravados nos CDs. Ainda que focado na função
referencial das letras dos cantos, o texto tenta mostrar aspectos importantes
trazidos ao debate da cultura popular (bem como sobre literatura oral,
folclore, patrimônio imaterial) a partir de uma perspectiva das performances
culturais.
Inicialmente, há de se
destacar a ênfase na práxis. A percepção do ator como a parte dinâmica da
cultura implica uma diferença com relação à percepção dos estudos de folclore
predominantes até a década de 1970, que tinham um olhar mais para o passado. No
mesmo sentido, a noção de emergência abre a possibilidade de flagrar na
interação estabelecida entre o ator e a plateia, durante o evento, elementos da
estrutura social em que ele ocorre e mesmo elementos que alteram essa
estrutura. Isso implica uma percepção da vida social como fundamentalmente
indeterminada, levando à percepção da estrutura social como algo mutável,
embora relativamente estável. Daí aquilo que é marginal, subalterno em relação à
cultura dominante, presente como resíduo do passado, poder ser recuperado num
projeto de futuro, de mais respeito, harmonia e solidariedade.
Outro aspecto
proporcionado pelo estudo da obra de Bule-Bule pelas lentes das performances
culturais é a percepção de que suas letras, ao mesmo tempo em que estão
inseridas numa tradição cultural, também realizam uma interpretação cultural.
Uma performance específica fornece um enquadramento que estabelece e define uma
forma de comunicação – entre outras possíveis –, numa dada comunidade. Assim,
uma apresentação de Bule-Bule, num Samba de Roda no Recôncavo baiano ou numa
cantoria no Nordeste, configura um espaço de experiência comum entre ator e
plateia, com símbolos compartilhados. A interpretação das letras para um público
acadêmico, de fora daquele círculo, recupera algo daquela experiência
específica e o projeta para fora de seu círculo original, ampliando seu
alcance, não obstante a ausência do contexto, da ambiência, e da execução
musical ao vivo. Execução musical, por sua vez, apenas em parte substituída
pela audição dos CDs.
Por fim, cabe salientar
que a noção de literatura oral desenvolvida por Richard Bauman (1975) como arte
da fala, da performance como um modo de falar, marca um dos momentos de
superação da perspectiva de estudos de folclore, incorporando elementos da
antropologia, da linguística e da crítica literária. Acrescentaria à lista os
estudos de etnomusicologia, história cultural, sociologia da cultura,
comunicação como áreas igualmente importantes para os estudos
interdisciplinares da cultura popular tradicional.
No Brasil, o universo
da cultura popular é formado pela herança de concepções do mundo de negros
cativos, índios, caboclos, por um lado, mas envolve também uma cultura ibérica
arcaica. Neste universo, predomina a crença na proximidade que os espíritos dos
mortos mantêm com os vivos; as almas dos antepassados habitando nosso mesmo
universo físico e psíquico e com ele entretendo relações, fastas ou nefastas.
Não por acaso, o objetivo de muitos ritos mágicos presentes na cultura popular
é conjurar as almas benignas e esconjurar as malignas. E quando os gestos
ritualísticos visam induzir as almas a interferirem em proveito do devoto e dos
seus ou em desfavor dos inimigos, encontramo-nos num espaço de convivência do
mágico com o religioso instituído, não raro, com predominância do primeiro
(Bosi, 1992; 2002).
Ao lidar com este
universo da cultura popular, marcado pela contiguidade de magia e religião,
busco evitar qualquer juízo de valor de tipo evolucionista, pelo qual a magia
degradaria a religião, fazendo-a regredir ao estado mágico, animista, arcaico.
O fato de recusar esta percepção elitista e olhar com interesse e respeito as
manifestações da cultura popular não implica, contudo, abraçar o extremo
oposto: a vertente romântico-nacionalista – no limite, populista – que toma por
eternamente válidos os valores transmitidos pelo folclore, ignorando ou
recusando suas vinculações com a cultura de massa e a cultura erudita. Aqui o
risco seria de cair em um particularismo excessivo, identificando expressões
grupais com um mítico espírito do povo, ou, mais ideologicamente, com a nação13.
Percebida às vezes como
estática, a vida arcaico-popular tem um dinamismo lento, mas seguro. Em
contato, mas à margem da cultura erudita, da educação formal institucionalizada
e dos meios de comunicação de massa, ela se reproduz no espaço da vida familiar
e comunitária, viabilizada pela rede formada por parentes, vizinhos e adeptos
de uma mesma religião – sem prejuízo do fato de alguns membros serem adeptos de
mais de uma. As manifestações da cultura popular têm, assim, forte traço
grupal, desempenhando a tradição papel de coesão social e moral nas
comunidades. Usos e costumes, lendas e narrativas, cantos e rezas são formas de
explicação do mundo fundadas em um valor cognitivo consensualmente
estabelecido. Elas estabelecem modelos de comportamento, preservam crenças e
valores. Não se trata, entretanto, de reprodução compulsiva do passado. Ao
lidar com o aqui e agora das necessidades do povo, essas tradições – em grande
parte orais – reapresentam-se e reelaboram-se continuamente, como resposta às
carências das comunidades. Assim, os bens da cultura não devem ser vistos como
formas literárias cristalizadas ou comportamentos concretos, mas como
significados permanentemente atribuídos pelos homens ao mundo e, portanto,
passíveis de mutações e ressignificações.
Com toda a antiguidade
e persistência das manifestações, ela conserva espaço para a criação individual
e desenvolve-se em contato com as novidades eruditas ou veiculadas pela mídia.
Filtra, entretanto, as novidades e rejeita o que considera impertinente,
reduzindo ao seu contexto o que é assimilável. Faz isso, traduzindo os
significantes no seu sistema de significados e adaptando sensivelmente o que
será incorporado (Bosi, 2002).
Além disso, o fato de
boa parte das festas da cultura popular ocorrerem atualmente no espaço urbano,
em uma economia monetária e integrada ao mercado, com tendência para a
heterogeneidade social e maior contato com objetos veiculados pela mídia, não
elimina um dos elementos mais marcantes da cultura popular: sua ligação com um
modo de vida rústico.
Nessa situação, no
Samba de Roda do Recôncavo baiano, na Folia de Reis, no Congado etc. é comum a
simultaneidade de versos e toadas cuja autoria é identificável ao lado de
outros carreados pela tradição. E é aí que se insere um artista como Bule-Bule.
Sua produção é bem próxima da cultura popular e ele mantém um vínculo forte com
a tradição do Samba de Roda, do Repente, da Vaquejada, do melhor do Forró, mas
sem prescindir de sua condição de artista, autor criador que assina suas peças.
Um artista antenado, que está atento ao mundo em que vive e não recusa o
diálogo com a sociedade circundante. Nem os vê como separados. Se tiver dúvida,
é só acessar sua página na internet, que é uma mostra de tradição sustentada
pela modernidade, sem que uma coisa prejudique a outra. Como ele mesmo
expressou:
Somos um país feliz. Um
povo feliz. Ainda é tempo de recuperar valores, equilíbrio, pessoas, tradições.
Estou no mundo sem precisar sair do meu mundo! As formas contemporâneas de
cultura de nosso país são enraizadas como em lugar nenhum no mundo.
E não é coincidência
que um estudioso da cultura popular, ao entrar em contato com essa obra, possa
perceber nela a riqueza do tratamento desses temas em suas canções. É
justamente esse diálogo de saberes que entendemos como fusão do horizonte de
conhecimento da obra e do intérprete/pesquisador. Na obra de Bule-Bule, temos
claramente um processo de fazer e criar, mas também de refletir, ou seja,
teorizar. E isso sem que Bule-Bule esteja imbuído de qualquer sentido de
resgate das concepções apresentadas. Ao contrário, ele as expressa como sua
verdade de artista e criador, e por isso lhes dá expressão.
Assim, o que Bule-Bule
apresenta não deve ser visto como reminiscência de tempos antigos, cujo sentido
se perdeu no processo histórico. Tampouco como objeto cristalizado,
desvinculado do dinamismo do presente, enfim, como evento folclórico. Em função
desta conotação restritiva às vezes associada ao termo folclore, ele foi
evitado neste ensaio. Além disso, para alguns brincantes, foliões, congadeiros,
sambadores o termo não é bem visto, pois implica atitude minimizadora ou
equivocada frente à sua prática, mormente quando religiosa. Alguns chegam a
usá-lo pejorativamente para demarcar suas diferenças com relação a aqueles que
se distanciam dos fundamentos sagrados, aderindo a uma tendência de
espetacularização na qual os rituais descontextualizados acabam contribuindo
para descaracterizar suas funções básicas e desvirtuar seus objetivos. E, por
fim, se o procedimento básico dos estudos de folclore, a descrição das
manifestações da cultura popular, teve e tem importância para levantar dados e
documentar tais manifestações, valorizando-as, ele, contudo, não tem
contribuição de igual importância para a compreensão do contexto sociocultural
de tais manifestações e da concepção do mundo de seus produtores.
Além disso, uma parte
significativa dos estudos de folclore realizados no país até a década de 1970 –
aliás, levados a efeito no mais das vezes por pesquisadores sérios, cultos,
eruditos, sensíveis e profundos – seguem o paradigma modernista; o material
coletado e documentado servindo, especialmente, para futura reelaboração por
artistas eruditos que o elevariam à condição de arte de estatura universal. Em
seus pressupostos vige a questão da identidade nacional, brasileira, e isso
direciona seu foco para o "objeto folclórico", em detrimento de seus
produtores e da diversidade sociocultural do país. Daí porque, neste ensaio, é
dada preferência à noção de cultura popular, em sua vertente tradicional. Estudar
a cultura popular implica estar atento para a proximidade entre a esfera
material da existência e a esfera espiritual ou simbólica, para a
indissociabilidade de necessidades orgânicas e necessidades morais, do corpo e
da alma. Cultura popular implica modos de viver, e seu estudo requer atenção
aos laços que atam os processos simbólicos às condições concretas de
sociabilidade da vida popular.
Embora evite o termo
folclore, este ensaio foi construído por meio de um diálogo estreito com as
concepções expostas por Carlos Rodrigues Brandão em seu livro
introdutório O que é folclore. Cumpre salientar, entretanto, que,
embora faça uso do termo, Brandão apresentou então, no início da década de
1980, uma proposta de alargamento do campo de estudo do folclore em tudo
compatível com as perspectivas aqui apresentadas. Segundo o autor,
é possível descrever
fatos isolados do folclore sem enxergar o homem social que cria o folclore que
se descreve. Mas é muito difícil compreender o sentido humano do folclore sem
explicá-lo através do homem que o produz e de sua condição de vida.
E, ainda que mais
complexa, a tarefa se mostra na mesma medida mais compensadora quando podemos
incorporar as próprias explicações deste homem sobre suas condições de vida,
sua visão do mundo, sua arte; explicações inseridas não teórica, mas
artisticamente, em sua produção e em suas performances, como faz Bule-Bule.
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Congado mineiro.
Coleção Itaú cultural – Documentos sonoros brasileiros 1. Acervo Cachuera.
Direção de pesquisa de Paulo Dias. Textos de Paulo Dias e Edimilson de Almeida
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DVD
Cê me dá licença:
capitão Julinho e o Congado de Fagundes (52 min.). Clube
do Violeiro Caipira de Brasília e Gaia Vídeo. Direção de Wesley Zaremaré.
Coordenação, pesquisa e direção musical de Sebastião Rios, 2008.
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