domingo, 15 de maio de 2016

Entre o Divino e os homens: a arte nas festas do Divino Espírito Santo








Entre o Divino e os homens: a arte nas festas do Divino Espírito Santo


José Reginaldo Santos GonçalvesI; Marcia ContinsII
IUniversidade Federal do Rio de Janeiro – Brasil
IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro – Brasil




RESUMO
A exemplo de outras festas populares conhecidas pela sua exuberância plástica ou performática, as festas do Divino Espírito Santo articulam uma dimensão que podemos reconhecer intuitivamente como estética, mas que, no entanto, resiste a ser descrita e analisada como uma categoria diferenciada e autônoma, enquanto uma obra de arte no sentido estrito do termo. Isso porque o conjunto de atividades que produzem essas festas realiza-se sob a inspiração de categorias mágico-religiosas e morais, tendo sua razão profunda de existir na obrigação coletiva e individual de "agradar ao Divino". As atividades técnicas, estéticas, econômicas, fisiológicas e psicológicas que desencadeiam a festa são realizadas como uma contradádiva oferecida ao Divino Espírito Santo, em agradecimento pelas distintas graças concedidas aos humanos.
Palavras-chave: arte, etnicidade, patrimônios culturais, religião.

ABSTRACT
Like many other popular festivals known by their plastic and performative exuberance, the holy ghost festivals articulate a dimension that we may intuitively recognize as aesthetic but that can not be described and analysed as a differentiated and autonomous one, and the festival can not be recognized as a work of art in the strict sense of the term. The practices that compose it are inspired by moral, magical and religious categories, whose deep reason lies in the individual and collective obligation to please the holy ghost. Such technical, aesthetic, economic, physiological and psychological practices in the festival are implemented as a kind of counter-gift to the holy ghost for the distinct forms of grace given to the human beings.
Keywords: art, cultural heritages, ethnicity, religion.



Sob o olhar profissional de um artista plástico ou de um fotógrafo, as festas do Divino Espírito Santo podem aparecer como um mundo exuberante de formas e cores em movimento: coroas e cetros em prata, bandeiras vermelhas do Divino com uma pomba ao centro, de onde se irradiam raios dourados; longas mesas de jantar rica e cuidadosamente arrajandas onde se estendem numerosos pratos, talheres e garrafas de vinho; procissões guiadas por crianças vestidas de branco, carregando coroas, bandeiras e flores, seguidas por bandas de música; altares domésticos devotamente erigidos, onde permanecem ao longo do ano a coroa e o cetro do Divino. A exemplo de outras tantas festividades populares no Brasil, esse conjunto apresenta um ostensivo apelo estético. Mas como distinguir nesse universo plástico entre o que é propriamente estético, o que é técnica, o que é magia, religião e moralidade?
Marcel Mauss, num estudo clássico, chamou-nos a atenção para o fato de que, nos chamados contextos "não modernos", mas evidentemente também em inúmeros contextos das sociedades contemporâneas, categorias como arte e técnica dificilmente poderiam ser diferenciadas com nitidez, estando embutidas em categorias mais abrangentes, especialmente aquelas de natureza mágica e religiosa. Ele sugere que o uso descritivo e analítico da noção de "fato social total" (Mauss, 2003) poderia dirigir nossa atenção de observadores e analistas precisamente para a dificuldade de encontrar, naqueles contextos, fronteiras muito bem delimitadas entre aquilo que é por nós classificado como uma atividade propriamente "técnica" ou "estética" e atividades que classificaríamos como mágico-religiosas. Em sua conhecida formulação, o "fato social total" envolve múltiplas dimensões, simultaneamente técnicas, estéticas, econômicas, jurídicas, fisiológicas, psicológicas, etc.
A exemplo de outras festas populares conhecidas pela sua exuberância plástica ou performática, as festas do Divino articulam um dimensão que podemos reconhecer intuitivamente como estética, mas que, no entanto, resiste a ser descrita e analisada como uma categoria diferenciada e autônoma. Isso porque o conjunto de atividades que produzem essas festas realizam-se sob a inspiração de categorias mágico-religiosas e morais, tendo sua razão profunda de existir na obrigação coletiva e individual de "agradar ao Divino". Assim, o conjunto de atividades técnicas, estéticas, econômicas, fisiológicas e psicológicas que desencadeiam a festa são realizadas como uma contradádiva oferecida ao Divino Espírito Santo, em agradecimento pelas graças concedidas.
Essas atividades se desenrolam por todo o ano, conhecendo no entanto uma notável intensidade no período que se estende da Páscoa ao domingo de Pentecostes. Nesse período elas assumem uma forma extraordinária, orgânica, e a festa como um todo aparece como um conjunto plástico e dramático de notável beleza. Mas seria possível descrever essas atividades de um ponto de vista estritamente estético? Talvez, se deslocássemos todo esse conjunto de atividades para o palco de um teatro; ou deslocássemos objetos materiais como as coroas, os cetros e as bandeiras para o contexto de uma exposição num museu de arte simplesmente ou num museu de arte popular; se delas nos apropriássemos por meio de um trabalho fotográfico sem pretensões documentárias. Mas em cada uma dessas opções perderíamos o espírito que move esse conjunto. É diante desse dilema que o chamado olhar antropológico possa, talvez, trazer uma contribuição distinta para o entendimento dos perfis semânticos que pode assumir a categoria "arte".

As festas do Divino Espírito Santo1
É vasta a literatura produzida sobre as festas do Divino Espírito Santo. Estudiosos de folclore (Cascudo, 1962; Moraes Filho, 1999; Van Gennep, 1947, 1949),2 historiadores (Abreu, 1999; Melo e Souza, 1994), antropólogos (Brandão, 1978; Leal, 1994; 2001; Salvador, 1981; 1987) têm produzido uma extensa bibliografia sobre a ocorrência dessas festas na Europa, no Arquipélago dos Açores, na Ilha da Madeira, no Brasil, nos Estados Unidos e no Canadá.
Apesar das contribuições importantes que podem trazer em termos informativos, os estudos de folclore (por certo os mais numerosos dentre as três categorias de estudos que distinguimos), assim como alguns estudos de história voltados para uma perspectiva estritamente descritiva, foram acertadamente criticados em função dos pressupostos etnocêntricos com que foram conduzidos.3 Desse modo, estudos antropológicos e históricos modernos deslocaram sua atenção dos "traços culturais" que distinguiriam essas festas, assim como de seu processo de difusão, para as funções sociais e simbólicas que elas desempenham em determinadas sociedades e períodos históricos.
Dentro desse conjunto, estudos realizados por antropólogos e por historiadores têm focalizado essa celebração em contextos sócio-culturais específicos: nos Açores (Leal, 1994; 2001); no Brasil (Abreu, 1999; Brandão, 1978; Melo e Souza, 1994); e nos Estados Unidos, especialmente Califórnia (Salvador, 1981, 1987). Neste artigo focalizaremos essas festas no contexto da cidade do Rio de Janeiro, recorrendo, quando necessário, aos dados de que dispomos em relação ao contexto norte-americano dessas celebrações, especialmente a Nova Inglaterra, uma das regiões norte-americanas fortemente associadas à imigração açoriana.

O Divino no Rio de Janeiro
Em diversos bairros e subúrbios da cidade Rio de Janeiro irmandades religiosas dedicadas ao culto do Divino Espírito Santo foram fundadas e são atualmente dirigidas por imigrantes açorianos.4 Há irmandades em Vila Isabel, na Tijuca, no Catumbi, no Engenho de Dentro (Irmandade do Outeiro), no Encantado, na Baixada Fluminense (Olinda) e uma no bairro da Engenhoca, em Niterói.5 Dessas, a mais antiga é provavelmente a do Outeiro, no Engenho de Dentro. A sede da Casa dos Açores fica situada na Tijuca, próxima ao Largo da Segunda-Feira, e possui também a sua própria irmandade. Algumas irmandades existem provavelmente desde fins do século XIX (como a do Outeiro); já a Casa dos Açores foi fundada no século XX, no início dos anos 1950.6
A vida coletiva desses imigrantes no Rio de Janeiro oscila, em grande parte, entre esses dois pólos institucionais. De um lado, está sua identidade religiosa; de outro, sua identidade cultural. Num desses espaços, representam-se inclusivamente enquanto "devotos do Espírito Santo"; no outro, enquanto "açorianos", portadores de um determinado "patrimônio cultural" expresso ideologicamente pela categoria da "açorianidade".7
Essas irmandades estabelecem historicamente fortes relações com a população dos respectivos bairros, e fazem parte da memória coletiva local, não havendo aí distinção muito marcada entre "açorianos" e "brasileiros";8 já a Casa dos Açores transcende as identidades particulares e locais das irmandades, reunindo os seus membros num ponto espacial e simbolicamente comum, expressando marcadamente a sua identidade de "açorianos".
A extensa teia de eventos coletivos anuais (festas religiosas, festas sociais, festivais, reuniões, almoços e jantares comemorativos) produzidos e partilhados por essa comunidade de imigrantes passa necessariamente por uma ou outra instituição. Entre esses eventos destaca-se, pela sua importância na vida dessa comunidade, a celebração anual das festas em louvor do Divino Espírito Santo.9
Essas festas são celebradas pelas irmandades, as quais, em relação à Casa dos Açores, ocupam um lugar afetivamente mais próximo nas representações desses imigrantes.10 Quando narram sua biografia e sua chegada ao Rio de Janeiro, referem-se sempre carinhosamente à experiência de irem a uma dessas festas (algumas são constantemente citadas, como as da Engenhoca, em Niterói, e a da Praça Sete, em Vila Isabel) onde tinham oportunidade de estabelecer ou restabelecer contatos com a rede social de açorianos no Rio de Janeiro.
Evidentemente, por objetivos analíticos, exageramos propositalmente as distinções entre um e outro espaço institucional. Na verdade tanto as irmandades quanto a Casa dos Açores trazem simultaneamente aspectos religiosos e culturais da identidade dos imigrantes açorianos. A Casa dos Açores, como já assinalamos, tem a sua própria irmandade; por sua vez, cada irmandade exibe junto ao altar a bandeira dos Açores, além das bandeiras de Portugal, do Rio de Janeiro, do Brasil e, evidentemente, a bandeira do Divino Espírito Santo; algumas reproduzem na sua arquitetura traços dos "impérios" açorianos.11 Há portanto uma continuidade entre os aspectos religiosos e os aspectos culturais. Nosso propósito, neste artigo, será descrever e analisar algumas daquelas categorias de pensamento usadas pelos açorianos e que tornam possível a mediação entre essas dimensões. Essas categorias permitem ainda a articulação social e simbólica dessa população no plano local (do bairro, da cidade), assim como em planos extralocais, uma vez que as irmandades, mas principalmente a Casa dos Açores, estabelecem vínculos formais e informais com instituições similares nos níveis nacionais e transnacionais.12

Os tempos e os espaços da festa
A celebração anual das festas do Divino Espírito Santo é parte importante da história da cidade, existindo aproximadamente desde o século XVIII. No século XIX, até o fim do regime monárquico, com o qual estava fortemente identificada, ela assumia grandes proporções, envolvendo praticamente todas as classes sociais. Com a proclamação da República a festa foi proibida. Antes disso, era tamanha a sua repercussão junto à população da cidade, que intelectuais chegaram a propor a sua escolha como símbolo nacional (Abreu, 1999).
As festas do Espírito Santo celebradas por irmandades açorianas datam aparentemente de fins do século XIX e permaneceram, até os dias atuais, intensamente associadas à identidade desse segmento de imigrantes no Rio de Janeiro. De certo modo, as irmandades açorianas deram continuidade, numa escala local e em pequenas proporções, às festas que foram proibidas pelo Estado nacional brasileiro. Evidentemente, participam dessas festas, nos bairros onde ocorrem, imigrantes açorianos e também a população brasileira local, assim como eventualmente imigrantes de outras origens, sejam portugueses do continente, sejam italianos. Mas a participação açoriana está articulada intimamente à suas identidades individuais e coletivas. As festas desempenham para essa população de açorianos e seus descendentes, funções e significados específicos, totalizando e distinguindo simbolicamente a sua experiência biográfica e coletiva.
Ao narrarem as origens da festa os açorianos a inserem na história portuguesa, situando-as miticamente no reinado de Dom Diniz (1261-1325). Os mitos de origem situam a fundação da festa ainda no século XIV, obra da rainha santa Isabel (1271-1336), esposa de Dom Diniz, a qual teria realizado uma promessa ao Divino Espírito Santo para que cessassem as guerras entre seu esposo e seu filho. O pagamento dessa promessa seria feito na forma de uma ampla e generosa distribuição de alimentos e bebidas aos pobres. Em algumas versões, a rainha coroava os pobres com sua própria coroa.13 Assinale-se que a inspiração religiosa da rainha santa teria como fonte o monge franciscano Joachim de Fiore (1135-1202), cujas idéias messiânicas apontavam para a existência de três idades do mundo: a idade do Pai, a idade do Filho e a idade do Espírito Santo. Com a terceira idade do mundo, este conheceria um novo tempo, e o império do Divino Espírito Santo traria paz e fartura para todos.
O "tempo das festas" (nos Açores, o "tempo dos impérios")14 é uma categoria usada pelos açorianos para distinguirem aquele segmento do ciclo anual em que se desenrolam as festas do Divino Espírito Santo. Elas são celebradas anualmente, a partir do domingo de Páscoa e durante 50 dias até o domingo de Pentecostes. Esse tempo é fortemente demarcado por meio de uma série de alterações espaciais, comportamentais, emocionais, fisiológicas, usos de objetos materiais e que vêm estabelecer simbolicamente uma delicada e progressiva separação em relação a um tempo cotidiano, um tempo profano, voltado para atividades mundanas. Nesse tempo das festas intensificam-se as trocas sociais e simbólicas entre seres humanos (ricos e pobres, homens e mulheres, vizinhos, compadres, parentes, amigos, etc.), e entre estes e o "Divino".15
Essa nova qualidade de tempo traz conseqüências significativas sobre a vida individual e coletiva dos devotos. As trocas se intensificam, os espaços se condensam, os encontros tornam-se mais freqüentes na capela da irmandade ou nas casas dos devotos. Podemos dizer que nesse período as pessoas vão de certo modo sendo separadas de um tempo velho, de um tempo já limitado em termos de recursos, e progressivamente incorporadas em um novo tempo, um tempo marcado pela "fartura" e pelos encontros intensos entre os homens e entre os homens e o Espírito Santo. As festas promovem assim uma passagem coletiva, aproximando-se do que seja um rito de calendário (Van Gennep, 1960), e inauguram um novo tempo sob o poder total do Espírito Santo. Há uma intensa mobilização de recursos nessa passagem: objetos (comida, roupas, velas, altares, comidas, bebidas e dinheiro) e pessoas circulam intensamente.16
No contexto urbano do Rio de Janeiro, as irmandades, situadas em diferentes bairros da cidade, são visitadas nesse período por um grande número de pessoas, especialmente pelos membros das outras irmandades localizadas em outros bairros. Moradores de um mesmo bairro, que não são açorianos e nem necessariamente filiados à irmandade local, aproximam-se desta através da festa do Divino. No sábado imediatamente anterior ao dia principal da festa (domingo de Pentecostes), os moradores de um determinado bairro (especificamente os moradores de favelas e áreas pobres da vizinhança) procuram a irmandade para a tradicional distribuição da alcatra e pão. No dia mesmo da festa, no domingo de Pentecostes, os moradores em geral participam das atividades promovidas pela irmandade: missas, jantar, barracas de jogos, etc. É a festa que, nesse período, aproxima socialmente todas essas pessoas (açorianos e membros da irmandade e moradores do bairro em geral), integrando-a na "memória coletiva" do bairro (Halbwachs, 1990).
Embora as atividades de preparação da festa já se desenvolvam no ano anterior, na noite do próprio domingo de Pentecostes (quando são sorteados aqueles sete irmãos que ficarão responsáveis pelas festas no próximo ano),17 é a partir do domingo de Páscoa do ano seguinte que as atividades se intensificam e ganham uma dimensão ritual mais forte. Durante sete semanas consecutivas, a partir da noite do domingo de Páscoa, sete irmãos e suas famílias irão permanecer, em cada semana, com a coroa do Espírito Santo (em prata e tendo no alto a figura de uma pomba, e acompanhada do cetro, também em prata). Durante essas semanas, cada família sorteada irá receber em sua casa outros "irmãos" da sua irmandade, bem como de outras irmandades e pessoas do bairro, para rezar o terço ou novenas em homenagem ao Divino Espírito Santo.
A festa existe, em todos os seus momentos, por meio de uma vasta teia de relações de parentesco, compadrio, amizade e vizinhança, integrando, no caso do contexto nacional brasileiro, açorianos e não-açorianos na condição de devotos do Espírito Santo.18 É possível afirmar que indivíduos participam da festa à medida que estejam inseridos de algum modo numa rede de parentesco e de relações pessoais. As unidades sociais de participação são "famílias": famílias nucleares e famílias extensas, mais compadres, vizinhos, amigos. Cada membro da irmandade participa da festa enquanto pai, avô, filho, irmão, tio, cunhado, genro, etc. É na condição de chefe de uma família, ocupando o centro de uma rede de relações de parentesco, que ele pode assumir a direção da festa.
Ao longo de todo o ano as famílias sorteadas para ficar com a coroa se preparam para celebrar o Espírito Santo em sua semana e para participarem das celebrações nas semanas de demais "irmãos". Esse processo ritual exige o dispêndio de muito dinheiro: quanto mais alguém gasta na sua própria semana mais prestígio consegue obter diante da comunidade. O dinheiro é gasto, por exemplo, na compra dos ingredientes necessários e com os serviços de preparação da massa sovada (pão típico que se faz nos Açores); na aquisição da carne que é distribuída e da que é servida no domingo do Espírito Santo; na compra dos ingredientes da "sopa do Divino",19 nos lanches que se oferecem aos convidados após as rezas que acontecem nas casas dos devotos; nas ornamentações de sua casa; na preparação do altar; etc. A irmandade oferece no domingo de Pentecostes a tradicional sopa do Espírito Santo a toda a comunidade de irmãos, aos membros das demais irmandades existentes na cidade, e a toda a comunidade do bairro. A distribuição de carne e pão é feita numa vasta quantidade à comunidade pobre da região (podendo chegar em alguns casos a cinco toneladas de carne). Nesse dia da distribuição, as calçadas junto às irmandades ficam repletas de pessoas na fila à espera da carne e do pão que serão distribuídos.
O "tempo das festas" opõe-se ao tempo anterior e posterior em termos da intensidade das atividades, da dedicação ao "trabalho para o Espírito Santo", dos freqüentes e intensos encontros sociais, dos almoços, lanches e jantares, da distribuição de pão e carne aos pobres, e das atividades religiosas como rezas, procissões e missas, diariamente ao longo de sete semanas consecutivas, culminando em domingo de Pentecostes. Poderíamos talvez dizer que enquanto o tempo cotidiano é marcado pela horizontalidade e pela relativa dispersão entre os membros das irmandades, o tempo das festas desloca-se progressivamente para a verticalidade, na medida em que a ênfase então está na concentração entre os "irmãos" e nas relações de troca entre os seres humanos e o "Divino", entre o mundano e o supramundano.
Os espaços principais da festa são a irmandade, as residências dos membros da irmandade, e a igreja católica do bairro, onde se realiza a missa, seguida da cerimônia da coroação no domingo de Pentecostes. O espaço é redefinido em função da aproximação em relação ao sagrado e da renovação do mundo. As atividades se concentram, alternadamente, na irmandade, nas casas dos irmãos, na igreja católica do bairro, e através das "procissões", que em seu trajeto mediam as distâncias físicas e simbólicas entre esses locais, articulando-os numa totalidade (Contins, 2003).
Se acompanharmos, ao longo do ano, os deslocamentos da coroa do Divino (objeto central das festas, ao lado do cetro e da bandeira do Divino), temos a chance de perceber os espaços ritualmente importantes da festa. Depois de permanecer por um ano na casa da família daquele irmão que foi o primeiro a ser sorteado na noite do domingo de Pentecostes, a coroa é deslocada no domingo de Páscoa do ano seguinte para a irmandade; em seguida, circulará, durante as próximas seis semanas (até domingo de Pentecostes), pelas casas dos seis outros irmãos sorteados, permanecendo em altares especialmente elaborados em espaços importantes dessas residências. No domingo de Pentecostes, ela será deslocada para a igreja do bairro (em muitos casos para a capela da própria irmandade), no interior da qual é realizada, após a missa, a cerimônia da coroação, sempre presidida por um padre. Em seguida ela é levada para um outro espaço da irmandade (ou para a casa do irmão que foi sorteado em sétimo lugar), onde acontecerá o almoço ou jantar do Espírito Santo, quando então será ritualmente servida a "sopa do Espírito Santo". Cada deslocamento físico da coroa é acompanhado ritualmente por aplausos e expressões intensas de contentamento e de boas vindas ao Espírito Santo. Enquanto é servida a "sopa do Espírito Santo",20 os devotos encarregados de servir os convidados gritam entusiasmados: "Viva o Espírito Santo". Os convidados repetem a expressão, intensificando a atmosfera de exaltação.

O Divino e os seres humanos
A celebração dessas festas faz ressoar com meridiana clareza uma conhecida afirmação de Marcel Mauss. Segundo ele:
Um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens tiveram que contratar e que, por definição, ali estavam para contratar com eles foi, antes de tudo, o dos espíritos dos mortos e os deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo. Era com eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar. Inversamente, porém, era com eles que era mais fácil e mais seguro trocar. (Mauss, 2003, p. 206).
Na ideologia dos devotos, a festa é realizada para agradar o Divino Espírito Santo, a partir do momento em que se faz alguma "promessa" ou quando se pretende retribuir alguma "graça" recebida. Essas são noções nativas por meio das quais se expressa de modo sensível a relação de troca entre os devotos e o Divino Espírito Santo. Essa relação é interpretada por meio das categorias da dádiva e da contradádiva, estabelecendo-se simbolicamente uma relação permanente com o Espírito Santo. O trabalho individual e coletivo envolvido no conjunto das atividades de preparação e realização das festas deve ser interpretado como parte desse intenso e permanente circuito de trocas.
Assim, as categorias da dádiva e da contradádiva estendem-se de forma difusa a todo o conjunto de ações e modalidades de trabalho realizadas pelos membros da comunidade de devotos ao longo de todo o ano. Todas as ações que direta ou indiretamente venham a contribuir para a realização da festa (sejam realizadas por homens, mulheres, por jovens, crianças ou idosos) são classificadas como "trabalho para o Divino". Há evidentemente os que reconhecidamente trabalham mais ou trabalham menos; mas todo o conjunto de ações realizadas adquire esse status de trabalho voltado para o Divino.
Trabalha-se durante todo o ano, no intervalo situado entre o fim de uma festa e o início da outra no ano seguinte. Mas as atividades evidentemente se intensificam à medida que se aproxima a Semana Santa. Nos meses que antecedem a Páscoa, alguns dos membros da diretoria da irmandade (exclusivamente homens) percorrem diversos bairros da cidade (zona Sul, zona Norte, subúrbios, Baixada Fluminense, Niterói) para buscar as contribuições dos devotos para as festas do Divino.21 Percorrem especialmente os açougues, uma vez que esse setor comercial na cidade foi, no período anterior ao predomínio dos supermercados, majoritariamente controlado pelos imigrantes açorianos. A devoção ao Divino Espírito Santo encontra nos açougueiros de origem açoriana uma fonte poderosa de recursos. Em geral designam essa atividade através da expressão "correr os açougues". As contribuições usualmente são em dinheiro e traduzidas em quilos de carne. Assim, um devoto pode oferecer 50 quilos de carne; ou dez quilos de pão. Essas contribuições são especialmente importantes não apenas para a preparação da sopa do Divino no domingo de Pentecostes, mas particularmente para a distribuição de carne e pão que se faz no sábado da semana anterior àquele domingo. Esse devoto que contribui receberá em troca convites para a festa do Divino à qual poderá ou não comparecer. Em geral o faz acompanhado de sua família. Importante assinalar aqui é o fato de que um grande número de pessoas (situadas em diversos pontos da cidade) se vê envolvida direta ou indiretamente nessas extensas relações de dádiva e contradádiva entre os homens e o Divino.

Rezando para o Divino
A relação entre o Divino e os homens é também mediada pelas rezas, especialmente quando se intensificam durante as sete semanas que antecedem Pentecostes.22 Durante os sete dias de cada uma das semanas entre Páscoa e Pentecostes, os irmãos que foram sorteados no ano anterior abrem suas casas para receber os devotos que querem fazer preces e promessas junto ao altar onde fica a coroa do Espírito Santo. As rezas em alguns casos podem ocorrer também na capela da irmandade, ao invés da residência do irmão. As rezas são dirigidas à coroa que, do ponto de vista nativo, é representada como o próprio Espírito Santo.
As rezas realizadas nas casas dos irmãos ou na capela das irmandades são conduzidas pelas mulheres. São elas também que preparam o altar onde a coroa do Divino e o cetro são colocados. O altar do Divino fica geralmente na sala de visita das residências, em um lugar de destaque, e recebe uma intensa elaboração. Sendo o ponto central do espaço do sagrado na casa dos irmãos, o altar recebe geralmente uma luz especial. A coroa do Divino está sempre iluminada.
As rezas para o Divino Espírito Santo se realizam a partir das nove horas da noite, todos os dias da semana, de segunda a domingo. A quinta-feira é um dia especial na semana, aquele em que um maior número de irmãos participa das rezas na capela da irmandade ou na casa de um dos irmãos. Embora a reza coletiva esteja programada para aquele horário, qualquer um pode a qualquer momento fazer uma prece individualmente para o Divino, uma vez que durante aquela semana a casa do irmão estará permanentemente aberta para essas visitas. As rezas da noite são sempre coletivas. Às nove horas em ponto a dona da casa faz soar um pequeno sino para todos se colocarem à frente da coroa, diante do altar, prontos para as preces. É especificamente para a coroa que todos se dirigem. Em posição mais próxima ao altar estão as mulheres: primeiramente a dona da casa e em seguida as demais mulheres da irmandade, geralmente da diretoria, e irmãs mais antigas. Logo após esse conjunto, situam-se outras mulheres, formando outras fileiras, e, por último, próximo à porta de entrada, ficam os homens. A reza tem a participação alternada e complementar de homens e mulheres.
O terço é rezado de pé, com o olhar voltado para o altar do Divino onde está a coroa.23 A dona da casa inicia o ritual das rezas dirigindo-se ao Espírito Santo e pedindo pela melhora dos irmãos que estão doentes, por todos os que necessitam de ajuda, pela irmandade e pela paz no mundo. O terço é iniciado com um pai-nosso rezado pelas mulheres. Logo depois os homens, que estão situados atrás, respondem, completando a reza. Em seguida as mulheres iniciam a ave-maria e os homens, do mesmo modo, a completam, e assim sucessivamente até completarem todo o conjunto de 50 ave-marias e cinco pai-nossos.
As rezas constituem um meio simbólico de concentração coletiva e individual dos devotos, elaborando dia a dia uma passagem temporal entre o domingo de Páscoa e o domingo de Pentecostes, com a chegada do Espírito Santo. Mas constituem também um meio para os indivíduos intensificarem sua comunicação com o Divino. Ao longo das rezas percebem-se tanto a dimensão coletiva e ritualizada das preces quanto sua dimensão individualizada e espiritualizada.24 Ambos os aspectos estão presentes nas celebrações do Divino Espírito Santo. Seria possível distinguir duas modalidades simultâneas de devoção ao Espírito Santo: uma devoção mais individualizada, interiorizada e espiritualizada; e uma devoção mais coletiva e ritualizada.
Após as rezas, o cetro é retirado do altar e levado a cada um dos irmãos. Estes respeitosamente inclinam a cabeça para beijar a pomba que fica na ponta do cetro e tocam com ela a sua fronte, em seguida o próprio peito, próximo ao coração. Depositam então uma doação em dinheiro na cesta que é levada por um dos irmãos. Há contribuições também para os irmãos que conduzem as celebrações naquela semana. Estas são feitas de outra forma, assinando-se o nome em um livro especialmente usado para isso e que permanece sobre o altar durante toda a cerimônia.
Concluídas as rezas e depois do cetro circular por todos os presentes, as mulheres dirigem-se a eles e os convidam para o lanche. Esse é o lado informal e profano das rezas. Geralmente são as mulheres que preparam o lanche para os irmãos. É nesse momento de informalidade que todos se reúnem para conversar e muitas vezes falar sobre o Divino, o que conseguiram e como ele os ajudou. O grupo se separa entre homens e mulheres, situados em espaços distintos. Ao fim do encontro, os presentes são contemplados com um pão em forma de rosca, feito de "massa sovada", que foi anteriormente benzido pelo padre.25

Procissões
Além das rezas, as procissões constituem momentos igualmente importantes (e mais públicos) nas celebrações do Divino e especificamente na passagem temporal entre a Páscoa e Pentecostes. A mais importante delas ocorre no próprio domingo de Pentecostes e se desloca da irmandade para a igreja local, percorrendo várias ruas do bairro, voltando, em seguida, para a irmandade. A procissão estabelece contatos não apenas entre os seres humanos e o Divino, mas igualmente entre a irmandade o bairro onde esta se situa. O bairro, que habitualmente é local de transações profanas, de ordem comercial, com o tráfego intenso de automóveis e ônibus, modifica-se nos dias de procissão. No contexto da festa, as relações que se estabelecem nesses dias no espaço do bairro tendem a ser relações totais. Pessoas de outras irmandades vêm prestigiar a festa. O espaço físico da rua modifica-se para a passagem da procissão. As pessoas, na rua, ao longo do trajeto, interrompem suas atividades cotidianas em sinal de respeito à procissão do Divino, que passa com seu notável aparato simbólico: a bandeira do Divino, a coroa mais o cetro, usualmente carregados por crianças ou por uma adolescente com o manto do Divino; além disso, trazem também as bandeiras dos Açores, de Portugal, do Brasil, do Rio de Janeiro e da Casa dos Açores. A procissão é sempre acompanhada por banda de música. Em passo lento a procissão chega à porta da igreja do bairro, ao som do hino do Espírito Santo. Diante da igreja, o provedor ou presidente da irmandade, mais sua esposa e filhos, ladeados por outros irmãos, colocam-se de frente para a rua, voltados para a multidão que os acompanha. A coroa do Espírito Santo é elevada e exibida diante das pessoas que assistem: é o tempo do império do Divino Espírito Santo. Ao longo de todo o trajeto rezam ave-marias e são eventualmente acompanhados pelos moradores do bairro. Muitos moradores vêm à janela de suas casas para assistir à procissão. Alguns homens da irmandade comandam o trânsito das ruas para que a procissão possa passar. As festas são conhecidas pelos moradores dos bairros e, como dissemos anteriormente, ocupam um lugar importante na memória coletiva local, em função mesmo de sua permanência, uma vez que ali estão situadas há muitas décadas, sendo conhecidas por várias gerações de moradores. Nas entrevistas que realizamos com velhos moradores a experiência de ter participado em algum momento das atividades da irmandade foi através das festas que eram realizadas na rua (com barraquinhas, brincadeiras, etc.) e também através das procissões do Divino Espírito Santo. A exemplo do que ocorre com as variações sazoneiras na sociedade esquimó estudadas por Marcel Mauss num célebre ensaio,26 as festas do Espírito Santo estabelecem ao longo de seu período de vigência uma visão distinta acerca da vida das pessoas e das relações entre elas que, nesse tempo, em oposição ao tempo do cotidiano, vêm a ser marcadas por um "estado de exaltação religiosa contínua" (Mauss, 2003).

A coroação
A coroação das crianças representa o ponto mais alto no contexto do tempo vertical das festas, quando se intensificam os contatos com o Espírito Santo. Nesse momento há uma intensa proximidade entre o Divino e os homens mediada de forma necessária e complementar pela Igreja. As coroações ocorrem sempre no interior da igreja e o ritual é conduzido pelo padre, logo em seguida à missa de Pentecostes. Na biografia de um açoriano, homem ou mulher, é reconhecidamente importante a experiência de ter sido "coroado" quando criança. Seja a prática reconhecida como uma forma de "devoção", seja ela, por vezes, designada como apenas uma "tradição" açoriana, o fato é que a experiência é pensada como importante, especialmente do ponto de vista dos pais e avós. Talvez o momento formal mais importante da festa, ele expressa o estabelecimento de um contrato definitivo entre o Espírito Santo e aquele indivíduo, marcando simbolicamente, a partir do alto e sobre sua cabeça, toda sua existência, de ora em diante sob o domínio do Divino. O momento da coroação desperta atenção e emoções intensas por parte dos presentes, especialmente por parte dos parentes das crianças.27
Nesse contexto ritual da coroação, a coroa do Espírito Santo não apenas "representa" o Espírito Santo; ela não é apenas a substituição de uma entidade ausente (conforme o sentido moderno da palavra "representação"). Na verdade, ela torna presente o Espírito Santo, mantendo assim com os seres humanos uma relação de "mistério" (por oposição à "transparência"), uma vez que estão em contato dois universos muito diferentes, a ordem cósmica, a ordem social e os indivíduos.28 Encarnação visível de um domínio invisível, ela não é apenas uma aparência, cuja forma seria valorizada em detrimento do invisível; ela não é um objeto, mas uma entidade; ela é a presença mesma do Espírito Santo com seus poderes e virtudes.29 Isso ocorre não apenas no contexto da festa, mas igualmente no período não festivo, quando a coroa pode, por exemplo, ser levada em visita à casa de algum irmão doente.
Considerando esses aspectos simbólicos da coroa (mas também do cetro e da bandeira)30 podemos entender a importância que adquire na biografia de um indivíduo açoriano (homem ou mulher) a experiência de ter sido "coroado". Talvez pudéssemos dizer que essa experiência tem um papel fundamental e complementar em relação ao batismo. Enquanto este último é assunto que diz respeito à Igreja, o primeiro diz respeito à irmandade, cujas relações são de constante e simultânea hostilidade e colaboração em relação à Igreja. A cerimônia da coroação, patrocinada pela irmandade, não pode ser realizada senão no interior da igreja e pelas mãos de um padre. Há desse modo uma forte complementaridade entre a irmandade e a Igreja, embora ao longo da história dessa festa (especialmente nos Açores) existam entre essas instituições alguns momentos de tensão, quando a Igreja chega mesmo a proibir a festa em razão de seus supostos aspectos profanos31 (Leal, 1994).

A estética da fartura e da comensalidade
Os diversos momentos da festa, momentos principais e momentos secundários, parecem todos demarcados por formas especificas de preparação, apresentação, distribuição e consumo de alimentos. A fartura no que se refere a comidas e bebidas assinala simbolicamente esse tempo renovado, esse tempo de generosidade em que o cosmos e a natureza oferecem seus frutos. Em outras palavras, nessa mediação entre um tempo de escassez e um novo tempo de fartura, o "sistema culinário"32 parece desempenhar um papel simbolicamente decisivo.
Esse sistema norteia a aquisição, a preparação, a distribuição e o consumo de alimentos, e realiza as mediações entre os membros da comunidade de açorianos, entre a comunidade e o mundo exterior, entre a comunidade e o Espírito Santo. Tudo nessas festas passa necessariamente pelas comidas e bebidas e pela comensalidade.33 As categorias de "escassez" e "fartura", usadas com freqüência pelos devotos açorianos, parecem nortear o sistema culinário presente nas festas. O conjunto de práticas e itens que integram o sistema visa sobretudo a "fartura", dimensão intensamente ritualizada na festa. Essas categorias, por sua vez, repercutem dimensões cosmológicas e sociais, constituindo-se num meio sensível por meio do qual pensam e tornam perceptível o mundo renovado pelo Espírito Santo.
No mito de origem da festa, o que sobressai é a categoria da redistribuição em sua forma eminentemente hierárquica: uma festa instituída por uma rainha com o propósito de alimentar os pobres, como forma de pagamento por uma graça alcançada pela intervenção do Espírito Santo. Essa dimensão da generosidade e da redistribuição é central na organização e realização da festa. Nela sobressaem não somente a redistribuição norteada pelo valor "generosidade" como também as formas de preparação, apresentação e consumo de comida – sem falar nas formas com que se lida com os "restos", que são obrigatoriamente redistribuídos aos pobres ou entregues para orfanatos, hospitais, etc.
A oposição fundamental entre as categorias do "cru" e do "cozido", entre o não elaborado e o elaborado, é ritualmente mediada ao longo da festa. Em seu conjunto, esta parece realizar um longo processo de mediações, onde o pólo elaborado (cozido) da oposição é enfatizado. O cozido, especialmente expresso pela "sopa do Espírito Santo" servida no principal dia da festa, cuja preparação e consumo tem papel central, desempenha o papel simbólico de agregar categorias sociais e categorias cosmológicas (açorianos, homens e mulheres, seres humanos e o Espírito Santo, etc.), opondo se à categoria do "cru" e do "assado".
Em alguns contextos (Nova Inglaterra, nos Estados Unidos; Santa Catarina, no Brasil) a festa é encerrada com o que chamam o "enterro dos ossos". Na Nova Inglaterra, tivemos oportunidade de observar durante nosso trabalho de campo que a festa é finalizada com o que chamam uma "sardinhada", na segunda-feira seguinte ao domingo de Pentecostes. Sardinhas fritas e cerveja, em oposição à sopa e à alcatra (preparadas pelo cozimento) servidas na véspera. Na fase final da festa, quando se faz a passagem de um tempo "sagrado" para um tempo "profano", serve-se e consome-se um alimento "assado" (não-cozido). A festa do Divino dos açorianos parece uma superelaboração do código culinário, com ênfase no pólo do "cozido", enfatizando-se os processos de mediação social, étnica, de parentesco, de gênero, de tempo, de espaço, e de ordem cosmológica e religiosa.
Vale lembrar aqui, de passagem, que o Espírito Santo, quando se manifesta na forma de punições sobre os homens, o faz usualmente na forma de uma queima, na forma do assado, de um contato excessivamente direto, não mediado entre o produto e o fogo. Nossos entrevistados contam com freqüência a história de um indivíduo que, tendo prometido doar um bezerro para o Espírito Santo, terminou por recusar-se a fazê-lo. O Espírito Santo teria feito com que um incêndio queimasse (assasse) seu rebanho, deixando vivo apenas aquele que lhe fora prometido.34
Em resumo, as mediações operadas pelo sistema culinário se fazem no plano dos alimentos que são consumidos; no plano de sua preparação (crus, cozidos, assados); no plano da redistribuição (reciprocidade); no plano da apresentação e das maneiras de mesa; e no modo como se dispõem dos restos.
Os alimentos estão presentes em todos os momentos da festa e são pensados a partir do pólo da elaboração. Isto é, são representados não enquanto itens para a satisfação de "necessidades básicas", mas enquanto elementos simbolicamente fundamentais para mediar as relações entre os integrantes da comunidade de devotos, entre a comunidade e o seu exterior, entre o Espírito Santo e os seres humanos, entre ricos e pobres, entre açorianos e não açorianos, etc.
Desse modo, é necessário explicitar a concepção mesma de "cozinha" e de "alimentos", do ponto de vista do que chamaríamos uma cosmologia açoriana. O "gosto" e a "necessidade", assim como a "fome" e o "paladar" são categorias "boas para pensar" oposições de natureza social, religiosa, étnica e cosmológica. Embora não esteja evidentemente voltada exclusivamente para o "gosto" ou o "paladar", a festa do Divino não é um ritual da "fome" ou da "necessidade", mas principalmente da "fartura". A sopa do Espírito Santo (assim como a alcatra) servida no jantar no domingo de Pentecostes é especialmente apreciada pelo seu sabor. Na avaliação da qualidade de uma festa leva-se em conta não apenas a fartura de alimentos e bebidas (e de convidados), mas também a sua qualidade, e especificamente a qualidade do seu preparo.
Ao se referirem ao pólo da escassez, ou da "necessidade", a ênfase está não na condição biológica da "fome" enquanto "necessidade básica". Na verdade os devotos têm em vista os "necessitados" e estes o são não apenas em relação a alimentos, mas sobretudo por estarem eventualmente fora do alcance do circuito de generosidade e redistribuição acionado pela festa. Esses "necessitados" (ou "pobres"), por sua vez, são fundamentais para a realização da festa, pois é para eles que se dirigem basicamente os esforços no sentido de se criar uma situação simbolicamente marcada pela "fartura". Ao realizar sua função redistributiva, as festas do Divino visam principalmente "agradar o Divino".
Uma cosmologia e uma antropologia nativas dos açorianos são expressas nas festas do Divino Espírito Santo e particularmente na sua cozinha. Nessa antropologia, a relação fundadora da sociedade é a relação dos homens com o Espírito Santo. Os seres humanos não são definidos pela suas "necessidades básicas" – como na cosmologia e antropologia ocidentais, na interpretação de Marshall Sahlins (2004, p. 563-619) –, mas pela sua relação com o Espírito Santo. É somente na medida em que se afastam dessa relação é que podem então ficar expostos às "necessidades", à fome, às doenças, em suma, à escassez. O Espírito Santo desempenha assim um papel mediador fundamental: ele é mediador entre o céu e a terra, entre a alma e o corpo, entre deus e os homens, entre a necessidade e o gosto, entre a fome e o paladar, entre a contenção e o excesso, a escassez e a fartura, entre o sublime e o humano.

A honra e a graça: o masculino e o feminino
Nas atividades realizadas em todos os momentos da festa, é possível distinguir um domínio masculino e um domínio feminino, cada um deles simbolicamente demarcado. As categorias "homem" e "mulher" nesse contexto festivo não expressam apenas relações de gênero, no sentido moderno desse termo. Trata-se, na verdade, a exemplo das noções de escassez e fartura, de categorias totais, pressupondo dimensões morais e cósmicas. As atividades femininas na preparação, organização e realização das festas do Divino são essencialmente complementares às atividades dos homens. Enquanto estes últimos desenvolvem suas atividades no espaço entre a família, a irmandade e o mundo exterior, fazendo contatos com círculos sociais e políticos mais amplos, especialmente quando buscam arrecadar fundos para as festas, as atividades das mulheres se desenvolvem predominantemente do espaço da família e da irmandade.
A elas, como mostramos, cabe dirigir as rezas; a elas compete os cuidados relativos à cozinha e à comensalidade, embora dividam essas atividades com os homens nos momentos mais importantes da festa (especialmente quando são servidas a "sopa do Divino" e a "alcatra", pratos principais no domingo de Pentecostes). Já o que está associado à rua e tudo que vem do plano mais estritamente mundano é mediado pelos homens. Os homens fazem o "peditório". São eles que vão comprar a carne e a cortam numa situação formalmente elaborada, quando se encontram (especialmente os que são açougueiros) na noite da sexta-feira imediatamente anterior ao sábado em que se faz a distribuição de carne e pão entre os pobres. Os homens fazem a distribuição de carne e pão no sábado pela manhã, depois dos alimentos serem benzidos pelo padre. Há uma associação entre a carne (a carne crua sobretudo) e os homens. Já as mulheres estão classificadas no lado interior, no lado do cozimento.
É possível dizer que enquanto a "honra" (a qualidade, precedência moral pessoal) se situa basicamente no domínio masculino, das relações entre os homens, o espaço da rivalidade e da competitividade, das relações com o mundo dos negócios e da política; a "graça" situa-se no plano feminino, especialmente no espaço das relações de dádiva e contradádiva entre os seres humanos e o Espírito Santo; a graça é uma dádiva unilateral concedida pelo capricho da divindade e sem possibilidade de retribuição definitiva.
Surpreendemos aí uma distinção fundamental entre o "mundo do Divino" e o "mundo dos seres humanos"; entre a impenetrabilidade da vontade do Espírito Santo, cuja "graça" é um mistério, e os esforços humanos de prever e controlar o futuro por meio do cálculo e do contrato, onde se conquista a "honra". Uma das funções simbólicas fundamentais das festas do Divino é realizar uma mediação entre esses universos. Resumindo um ponto bastante complexo, diríamos que as festas do Divino transformam simbolicamente a "honra" conquistada pelos homens no mundo terreno em "graça" concedida pela vontade misteriosa do Divino.35
É importante assinalar ainda a forte rivalidade entre as irmandades e entre os diversos membros de uma mesma irmandade, e particularmente entre aqueles que dirigem irmandades e também aqueles que assumem, em virtude de sorteio, a direção da festa em cada uma das sete semanas que antecedem o domingo de Pentecostes. Por parte dos que dirigem as irmandades e por parte daqueles que conduzem as festas há um visível e obsessivo esforço para realizar o que seria considerada a melhor festa, a mais bela, a que recebeu o maior número de convidados, aquela que exibiu e serviu a maior fartura e a melhor qualidade de comidas e bebidas. Cada detalhe é rigorosamente avaliado e julgado pelos membros das diversas irmandades. Alguém que ofereça uma festa à qual faltou comida e bebida, ou à qual não compareceram muitos convidados, terá seu prestígio fortemente abalado. Cada um daqueles com quem conversei, especialmente homens, manifestou seu intenso temor de que faltassem comidas e bebidas, ou que faltassem convidados, ou que algum detalhe comprometesse a festa. Uma festa bem sucedida confirma a sua posição social e moral superior, ou a sua honra. Mas, uma vez que nem todas as festas podem ser igualmente boas, muitos saem eventualmente diminuídos ao fim do tempo das festas. Esse é portanto um teste para o prestígio pessoal de cada um daqueles que se colocaram à frente da condução das festividades.36
Trata-se no entanto de uma rivalidade sempre contida. Assim, é em respeito ao Espírito Santo que buscam aparentar moderação em seus gestos de generosidade, tornando possível a transformação de sua honra pessoal em "graça". A fonte última desta é evidentemente o Espírito Santo. Diferentemente da "honra", que é algo que se conquista, que se acumula e se defende contra os rivais, a "graça", categoria eminentemente feminina, é tão somente recebida e depende do capricho do Divino Espírito Santo.37

Entre o humano e o Divino
A categoria "arte" no contexto dessas celebrações assume significados simultaneamente contingentes e transcendentes. Em outras palavras, as festas do Divino são o produto de uma artesania ao mesmo tempo profana e sagrada. Se, por um lado, é possível reconhecer nessas festas o resultado de atividades humanas contingentes de natureza técnica, econômica, social, moral e estética, por outro, elas assumem uma dimensão transcendente, para além do controle consciente exercido por essas atividades, de tal forma que poderíamos dizer que nelas se manifesta a dimensão da "graça". Apesar dos esforços individuais e coletivos para a realização do que possa ser considerado como a melhor e mais bela festa, há um lado imponderável que os devotos atribuem às iniciativas do Divino Espírito Santo. Essas iniciativas, como dissemos, podem assumir ora um caráter vingativo e destrutivo, ora o caráter generoso da "graça". Neste último aspecto, como vimos, a mediação feminina é fundamental. Se os devotos assumem a responsabilidade pela realização e pelo sucesso das festas, pela obrigação de "agradar ao Divino", este por sua vez pode confirmar ou não essas expectativas, uma vez que o sucesso e a beleza de uma festa não pode depender de modo absoluto da iniciativa humana. Nesse sentido, a festa assume um caráter relativamente autônomo, impondo-se sobre aqueles que a realizam, exigindo-lhes um aprendizado e uma dedicação contínua, a qual resulta, de certo modo, na própria constituição simbólica dos devotos. A arte de festejar é assim, nesse contexto, uma atividade feita de transparência e mistério, cuja finalidade, mediada pelo Divino, transcende os propósitos humanos.

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